Alexandre Pais

Crónicas da Sábado: os demónios da noite

C

Estou
assim entre as nove e as dez. Balanço entre a herança genética do meu pai – que
dormia facilmente em qualquer
circunstância e que não ficava bem com menos de uma dezena
de horas de sono em 24 e talvez por isso tenha chegado aos 94 anos – e a da
minha mãe – que noite em que durma três ou quatro horas é noite de festa e a
verdade é que já vai nos 92. O que parece indicar não haver uma relação muito
próxima entre a longevidade e a duração dos períodos que passamos, ou não
passamos, nos braços de Morfeu.

Conta a
minha mãe que, enquanto se vira e revira na cama, na vaga esperança de
adormecer ou enquanto não chegam aos auriculares os companheiros de madrugada
na rádio, saltam-lhe à memória coisas do passado que a afligiram, preocupa-se
com problemas inexistentes do presente ou atormenta-se com episódios dolorosos
do futuro que o futuro se encarregará que não aconteçam – ou aconteçam outros,
imprevisíveis para ela ou para qualquer mortal.

Não utilizo
essa capacidade de viajar pelos tempos. Elimino com frieza dos labirintos do
pensamento situações desagradáveis, momentos de perigo, lições demasiado duras,
ofensas que outros não esquecem, ódios que se arrastam para a eternidade.
Também não me culpo por não ter dito o que devia a todos aqueles de quem
gostei. Sou pragmático: os comboios que não apanhei não param mais nesta
estação – estão definitivamente perdidos.

Julgo,
enfim, ter herdado um mix de genes do sono, pois sou capaz de dormir
oito ou nove horas ao fim-de-semana e nas férias – desde que consiga o milagre
de ignorar a pressão, épica tarefa – e contento-me com quatro, eventualmente
cinco horas, nas noites úteis, quando mil inquietações me agitam a
cabeça e os fantasmas da dúvida me lembram que tenho mais de uma centena de
pessoas que podem ser afectadas pelos meus actos e que se sentem ameaçadas
sempre que me deixo cair na armadilha das certezas.

Talvez o
passado só apareça para me desassossegar terminada que seja a minha actividade
profissional e os deuses da noite me levarem a rever familiares, amigos e
companheiros que a lei do tempo e as injustiças da vida fizeram desaparecer. E
me confrontem com os erros que cometi, os projectos que falhei, as palavras que
ficaram por dizer – e foram tantas. Temo, até, que me torturem com o pior dos
pesadelos: a recordação dos bandidos que conheci, a coragem que fui
desencantando para combater alguns e a cobardia com que cedi a outros. Serei
então um pequeno homem indefeso perante o poder dos demónios? Pequeno homem,
certamente. Mas conheço bem a sua sanha persecutória e hei-de encontrar maneira
de os enfrentar.

Observador, crónica publicada na edição impressa da Sábado de 12 julho 2012. Tema de Sociedade da semana: o sono…

Por Alexandre Pais
Alexandre Pais

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