Na última recolha do Banco Alimentar não sei o que me impressionou mais, se o novo máximo de doações dos portugueses, se o número de voluntários que se disponibilizou para ocupar o seu tempo livre a armazenar milhares de toneladas de produtos. E vou passar a sentir dificuldade em classificar como doente – e tantas vezes aqui o fiz nos últimos seis anos – uma sociedade que exibe esta capacidade de ser solidária. Talvez os doentes sejam, afinal, só alguns. E seja igualmente eu próprio, já vos digo porquê.
Quando carregava o segundo carrinho de compras, a fim de cumprir a minha quota na impressionante vaga de generosidade nacional, apeteceu-me encher um terceiro. Não ficaria mais pobre. Mas senti-me incomodado ao ver muitas pessoas que não conseguiriam disfarçar, mesmo que o quisessem, a magreza dos seus recursos, a doar um pacote de feijão ou uma lata de atum com um sacrifício infinitamente maior do que eu poderia fazer a carregar dois carros de supermercado, ou uma dúzia. E dar o que se não tem é que é o verdadeiro acto de amor.
Entre os programas de televisão que gravo para ir vendo pela madrugada fora até que me dê o sono, escolhi há dias um The Oprah Show dedicado a figuras públicas com preocupações sociais. Uma das convidadas foi Malaak Compton-Rock, a belíssima mulher do milionário Chris Rock, considerado um dos cinco melhores intérpretes de stand-up comedy de todos os tempos. E Malaak começou por citar a frase mágica de Marian Wright Edelman, a célebre activista norte-americana dos direitos das crianças: o serviço é a renda que pagamos para viver. Em poucas palavras, ela disse tudo.
São dois conceitos de solidariedade. Um é o de Malaak, o dos ricos ou muito ricos que pretendem dar, de si, uma imagem humanista, real ou fictícia, e que destinam uma pequena fatia dos seus rendimentos a fundos de beneficência – e honra lhes seja feita porque muitos há, igualmente abastados, que se distinguem por uma criminosa insensibilidade social. Outro é o da grande maioria dos que contribuíram para o Banco Alimentar, o daqueles a quem o pouco que sobra é para repartir com os que nada têm.
Penso muitas vezes com os meus botões em como, não sendo rico, também nunca fui capaz de me envolver com uma instituição vocacionada para ajudar os desprezados pela sorte e esquecidos por Deus. Curiosamente, é um projecto antigo que gostaria de viver para realizar, apesar de encontrar sempre uma justificação para o seu adiamento. A explicação é dura: sou um egoísta puro, voltado mais para mim do que para os outros, incapaz de dar o grande passo que me leve a pagar a renda. Terei ainda tempo para mudar?
Observador, publicado na edição impressa da Sábado de 9 dezembro 2010