O futebol é um espelho da vida. Então para quem leva já uns bons anos de estrada é mesmo um livro que começamos a ler e percebemos o fim, ao cabo de poucas páginas. Por vezes, arte dos grandes autores, somos surpreendidos, e tudo termina ao contrário do que prevíamos.
É o que desejo, sinceramente, que aconteça com Bruno Lage, elevado aos píncaros apenas por ter interpretado uma história de amor, trabalho e competência. Só que no futebol os cemitérios estão cheios de gente sabedora e capaz, que pelos caprichos da bola – e da vida, cá está ela – não conseguiu cumprir o objetivo que é exigido aos líderes: vencer não uma, nem duas, nem dez vezes, mas sempre.
Creio que, com o sucesso, Lage se entusiasmou na exibição das diferenças, a primeira das quais um estilo novo de se relacionar com os média, com um discurso limpo e de proximidade, esclarecido e sem tabus, despido daquela acidez obtusa a que outros nos habituaram para manter o clima de conflito permanente que só interessa aos fracos. Fez bem, claro, mas ao dispensar a carapaça da arrogância deixou em baixo a guarda para os momentos difíceis – que pareciam nunca vir mas que jamais falham. E aí estão.
Quando as vitórias se sucediam – e o Benfica apresentava uma equipa ligada e praticava um futebol demolidor que erguia a Luz – Bruno Lage era um iluminado, um mago da estratégia, que ganhava motivando os seus homens, que nele viam um génio, ainda por cima recorrendo aos putos da academia, cuja inexperiência os antecessores de Lage tanto temiam.
Mas a boa forma perdeu-se, os resultados começaram a fraquejar, os desempenhos individuais baixaram e a segunda derrota na Champions trouxe o choque: afinal, o treinador dos encarnados nem em tudo o que toca transforma em ouro. A rotação dos jogadores passou de superlativa a excessiva, as táticas não são tão perfeitas como se pintavam, os cartilheiros torcem-se nas cadeiras para fugirem às críticas mas vão rosnando, os incondicionais inquietam-se: se calhar, Lage não é assim tão bom.
Antes do colapso de São Petersburgo, o técnico deu-se até ao luxo – numa atividade profissional em que a cidadania e a solidariedade não são propriamente uma preocupação – de fazer um apelo ao voto para as eleições de ontem. Atitude feliz, elogiada nas redes sociais e logo zurzida após a derrota de quarta-feira. “Preocupa-te mas é com a m… da equipa que tens” foi do mais suave que se leu.
A pausa na liga veio na melhor altura para Lage, que pode refletir no que fez bem e no que errou, e preparar com solidez o recomeço. Por mim, que o aprecio, espero que permaneça fiel àquilo em que acredita – e que se tiver de cair que caia com as suas ideias. Por uma razão nada desprezível: é que os palpites de outros, de ziguezagues ao sabor da esquizofrenia reinante, é que tornariam a sua desgraça certa.
Outra vez segunda-feira, Record, 7out19
Que Bruno Lage se mantenha fiel às suas ideias!
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