Era um homem magoado e não vale a pena, na hora do seu desaparecimento físico, dourar a parte pior. Recordo situações várias, ao longo particularmente dos últimos anos, em que simples tentativas para lhe obter uma declaração esbarravam em frases do tipo há dinheiro para tudo, só para o Eusébio é que não. E não fosse a arte do seu amigo João Malheiro para o amaciar e o trabalho dos jornalistas, por muitas horas que esperassem em tardes de seca na Adega da Tia Matilde, estaria destinado ao insucesso.
Claro que a mágoa vinha detrás, do percurso internacional que não lhe deixaram ter, das lesões mal debeladas – tratadas com os meios artesanais dos anos 60 e 70 e que liquidaram precocemente tantos outros futebolistas –, da saída do Benfica, em 1975, aos 33 anos, para os Estados Unidos e Canadá, e a seguir para o México, com paragens breves e inglórias em Aveiro e em Tomar. Terminaria a carreira quatro anos mais tarde, com os joelhos e a alma destroçados.
O Benfica voltaria a abrir-lhe a porta, como era, aliás, obrigação do clube para quem o serviu a um nível tão alto que jamais foi repetido. Mas o mal estava feito. Eusébio, que ganhara muito dinheiro e muito dinheiro gastara como se o Mundo acabasse amanhã, não poderia mais viver com o esplendor que conhecera e estava condenado a uma honra de salário limitado: ser embaixador do emblema da Luz e do futebol português.
Não dispôs também o King, antes ou depois de deixar os relvados, de capacidade – ou vontade – para encontrar um gestor de carreira que pudesse transformar em cash o tremendo potencial da marca que ainda assim construíra, ao mesmo tempo que via jogadores de rendimento inferior a uma só perna das suas enriquecerem rapidamente. E isso fez dele uma pessoa amargurada, que encontrava na comida e na bebida o calor do conforto e da reparação.
Com o choro sincero dos que entenderam o seu papel no orgulho coletivo – e que só Manuel dos Santos, Joaquim Agostinho e Amália Rodrigues suscitaram na hora do desaparecimento – Eusébio partiu sem conseguir a aceitação geral. No último domingo, dia da sua morte, fui ao Teatro da Trindade ver A Noite, de José Saramago, e os grandes desempenhos de João Lagarto e Vítor Norte. E apesar de terem tido o desplante de se desmanchar em cena com uma private joke, num desrespeito inaceitável pelo público – não os atores que cito mas outros –, não houve quem a propósito da referência a Eusébio constante no texto interrompesse a representação para uma breve homenagem. O futebol não é poesia, é certo, mas o pantera negra projetou mais o nome de Portugal do que Camões, que leva 400 anos de avanço. É, a verdade dói.
Observador, Sábado, 8JAN14
Eusébio, o rei amargurado
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