Alexandre Pais

Dossier has been – Assim escrevia um mito: Ricardo Ornellas

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Ricardo Ornellas, “mestre da crónica do futebol”, escreveu para “Selecções Desportivas” – em Setembro de 1951, ver post Primeira edição (2) – uma série de reportagens acerca da sua viagem, em maio, ao Festival Britânico. Nesta “modelar de observação” ocupa-se do encontro Inglaterra-Argentina.

Na casa do futebol britânico

Conhece-se a razão por que a Grã-Bretanha convidou este ano, para jogarem na sua Ilha, umas quantas selecções de países continentais e muitas equipas do clube da mesma procedência. Sofridas várias derrotas pelos seus representantes e por equipas das Ligas no estrangeiro, as Associações de Futebol da Grã-Bretanha e, também, a do Eire, deram ensejo às suas selecções e aos seus clubes para terem, por sua vez, o benefício «da casa». O «Festival Britânico» servia perfeitamente para combinar desafios em quantidade, até porque foi necessário chegar-se a acordo com os próprios jogadores, que, sendo profissionais e com obrigação apenas de jogar na época oficial, acabada no primeiro sábado de Maio, algum «extra» teria de lhes ser assegurado pelo prolongamento do seu trabalho. Com muitas equipas de clubes a terem de funcionar mais tempo, o acordo tornou-se mais fácil pela quantidade… Com menos equipas, portanto menos jogadores, a utilização excepcional poderia afectar os bons princípios, ou então, por serem poucos, os desafios teriam de ser combinados cada qual com sua base financeira; e não fazia sentido que se integrassem no programa do «Festival». O malogro do onze de Inglaterra, no ano passado, na «Taça do Mundo» esteve também, em muito, na decisão dos dirigentes do futebol britânico.

Conhecem-se, também, os resultados; a grande maioria deles, impressionantemente até, porque entraram na liça muitos onzes da II e da III Liga Inglesa, foi favorável aos visitados. A ideia de superioridade alcançada pelos de fora da Grã-Bretanha, em relação ao futebol britânico, ficou de certo modo desvanecida. Vincou-se o progresso dos continentais na sua capacidade de, «em casa», poderem competir com uma frequência que, antes, não existia e isso não causa dano ao futebol – nem ao da Grã-Bretanha, nem ao continental; o que se pretende é uma ascensão geral. A bem dizer, só a Áustria, através de equipas de clube, deixou vincada uma categoria firme; e não chegou a uma dúzia o total de selecções nacionais e de equipas de clubes visitantes que conseguiram… mais de dois golos nas balizas «da casa».

Enviado-especial do «Diário Popular» à Grã-Bretanha – por motivo dos desafios do «Onze de Portugal» em Cardiff, contra a selecção do País de Gales, e em Liverpool, contra a equipa da Inglaterra – pude assistir a alguns desafios do Festival fora daqueles em que interferiram os jogadores portugueses.

O primeiro foi o desafio-máximo: Inglaterra-Argentina. Inteligente o convite da «Football Association» à Federação sul-americana. O futebol argentino declarou-se capacíssimo de ter ganho a «Taça do Mundo» de 1950, conquistada pelo Uruguay. Mas, por motivos à parte do desporto, não manteve a sua inscrição na prova. Assim, a Inglaterra, batida logo no grupo de qualificação da Taça, escolhia, afinal, um adversário da maior categoria, que, se não tinha ido à grande competição, valia tanto como os melhores. Com efeito, isto se deduzia das suas classificações no torneio sul-americano, em confronto exactamente com os países que haviam decidido o título na final da «Taça do Mundo» do ano passado: o Uruguay e o Brasil.

Pois a partida foi uma desilusão, como jogo entre duas equipas! A bola não girou de baliza a baliza, nesse «trabalho» que lhe dão dois grupos iguais, nesse espectáculo que subjuga o espectador porque não sabe qual dos «onzes» à sua frente ataca melhor e defende com mais acerto, porque ambos atacam e porque ambos defendem, em situações constantemente alternadas. O único período em que esta «parada e resposta» quase existiu, pois mesmo assim, os ataques dos ingleses tomaram logo a proporção de três contra um, foi no primeiro quarto de hora, altura em que os argentinos adregaram o primeiro golo da partida. De aí em diante, até o intervalo, a proporção passou, a favor dos ingleses, para seis «ataques organizados» contra uma «fugida dos avançados argentinos sem apoio». E na segunda parte pode dizer-se que nem houve proporção: os ingleses só atacaram e os argentinos só defenderam, em especial o seu guarda-redes; e até à baliza de Inglaterra a bola foi, quando muito, quatro vezes! Os ingleses só conseguiram igualar e desempatar a seu favor nas proximidades do fim, mas a resistência da selecção argentina foi amiúde limitada, exclusivamente, ao seu guarda-redes Rugilo. Se este tem «sorte sua» de excepção, talvez pudesse manter a superioridade de 1-0 para os visitantes. Mas seria preciso que a «sorte» não pedisse ao jogador, ao menos, que ultrapassasse o limite da sua resistência física! Na verdade, quando Rugilo, depois de mandar a bola para «canto», perto do fim, deixou cair os braços, tinha caído o último jogador argentino perante a supremacia dos ingleses. Ainda na primeira parte, o grande defesa sul-americano Colman tinha saído do campo, magoado; a falta da sua colaboração sentiu-se; mas, em relação ao tempo decorrido até que se entrou no último quarto de hora do desafio, não se acreditava que ainda sobrevivesse quando Rugilo capitulou.

A Inglaterra ganhou, pois, por 2-1, remêdo de 6-1 ou mais. A Argentina, no entanto, esteve muito próximo de 2-1, logo a seguir ao golo de igualdade da Inglaterra. Não seria justo, porém, que ficasse vencedora; ganharia por um desses imponderáveis do futebol que… deveria ser «ponderado» pela sorte do jogo; é possível, afinal, que tenha sido «ponderado», mas, claro, a interpretação é vedada a todos…

Ao fim e ao cabo, a derrota de 1-2 não diminuiu a Argentina. Mas, como já tenho dito muitas vezes: se no desporto o resultado é o «que fica», não há dúvida que cada resultado tem sua história. Sem querer, talvez eu tenha definido a necessidade da crítica do futebol…

Diminuiu, no entanto, a Inglaterra, que jogou para muito mais folgada diferença, tendo mesmo em conta que o guarda-redes é um adversário.

Os argentinos não souberam dar uma pálida ideia do seu virtuosismo. Justificaram-se com o estado do terreno, que estava encharcado da chuva forte da véspera e da manhã. Um crítico inglês referiu-se a esta desculpa, dizendo que os futebolistas devem saber jogar «em todos os campos e em todas as condições de tempo». Indirectamente valorizava os ingleses – e tinha razão.

Em minha opinião, porém, os argentinos devem ter sido presa de uma preocupação que inferiorizou a sua arte. Insensivelmente, perturbaram-se com a vantagem de 1-0 «tão depressa» e fizeram de jovens perante gente crescida. Entregaram-se à batalha na defesa da vantagem e perderam colocação que não fosse de barrar o caminho dos adversários para a sua baliza. Renunciaram a competir. A colocação mestra dos ingleses – que teve afinal a falha do golo cedido – começou depressa a afligi-los. E entre fazer por põr de parte esse embaraço e dar tudo por amparar a vantagem obtida, optaram por esta última atitude. Foi pena. Quiseram talvez de mais à «vitória». Tenho a impressão de que de uma maneira ou de outra, viriam a perder o encontro, mas, com a sua arte e umas quantas maneiras suas de domínio de bola, que, à força de insistência, fizessem prevalecer, poderiam competir de verdade, deixando em Wembley o que os espectadores esperavam.

O colega inglês tem razão: «os bons futebolistas jogam em qualquer campo e em qualquer tempo». Os argentinos esqueceram-se de que são bons futebolistas para só pensarem em ganhar… Isto sucede em muitos desafios – e talvez seja o que têm de mau as partidas internacionais… O defeito, se o é,  transforma-se em virtude do próprio futebol. Nunca ninguém sabe como pode, de certeza, ganhar: se à custa de tácticas, se esperando pelo final das partidas – gastando a hora e meia com tácticas diversas… ou sem nenhuma.

Seja como for, no desafio Inglaterra-Argentina, a equipa inglesa é que se mostrou. Não se pode calcular até onde iria a sua defesa, se fosse castigada, mas viu-se, isso sim, o seu poder de harmonia ao ataque, com o pormenor curiosíssimo de os seus defesas e os seus médios vincarem muito mais, com a bola raza a caminho do meio-campo adversário, a capacidade do «jogo de ataque» que existia na equipa do que a própria linha de avançados. É claro que o facto de a selecção argentina estar à defesa – médios e trio final – avantajou, em expressão, o trabalho dos defesas e médios ingleses, mas esta acção não deixou por isso de ser um «número do espectáculo» para os assistentes. Estes pormenores e o poder de choque e de variedade de lances de todos os avançados ingleses fizeram o proveito dos espectadores.

 

Ricardo Ornellas nasceu em Lisboa, em 31 de Dezembro de 1899. Foi aluno da Casa Pia e começou por ser empregado de escritório. A sua vocação, o jornalismo desportivo, concretizar-se-ia mais tarde, no “Diário Popular”, e prolongar-se-ia por 45 anos. Foi também treinador de futebol (do Casa Pia) e selecionador nacional. Foi ele quem designou pela primeira vez a Seleção como “a equipa de todos nós”. Escreveu diversos livros sobre futebol e o Governo distinguiu-o, em 1966, com a medalha de Bons Serviços Desportivos. Faleceu  a 4 de Setembro de 1967.

 

Por Alexandre Pais
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