Tenho
procurado ao longo da vida recuperar o tempo perdido em criança. Porque embora
tivesse sido, então, um privilegiado em relação à maioria dos rapazes da minha idade, não pude
naturalmente ter acesso aos brinquedos que estavam por inventar. Vivi a infância
na época dos carrinhos de madeira, pelo que colecionei mais tarde, ao entrar na
adolescência, as miniaturas dos modelos que sempre desejei. E comprei, logo a
seguir, um dos primeiros gravadores do mercado e um dos primeiros rádios a
pilhas, a que chamavam transistores, e que distinguiam, na via pública, os
ridículos que andavam a par das modernas tecnologias. Ficava a ouvir o
RCP e a RR pela madrugada dentro, era a loucura.
Antes, creio que quando fiz 12 anos, ofereceram-me um comboio eléctrico da Marklin,
mais um sonho realizado, e recordo-me de, com 21 ou 22 anos, e já pai, ainda
montar as linhas pela casa fora, resistindo a uma maturidade que, feliz ou
infelizmente, muito tardaria.
A década de 50 – aqui, alguns jornalistas acrescentariam do século passado,
como se pudesse ser no atual ou no 19 – foi, no entanto, marcada por outro
brinquedo mítico, muito popular na altura: o Meccano. Era composto por
pequenas chapas coloridas de metal, e por inúmeras porcas e parafusos a
ligá-las, e passei longuíssimas horas, na casa da Estrela, a montar e a
desmontar objetos, normalmente coisas disformes. Não há muito, em Barcelona,
fiquei petrificado em frente a uma montra onde se exibiam antigas construções
de peças de Meccano, um verdadeiro deslumbramento.
A escassa variedade de brinquedos e a falta de um passatempo triturador
como viria a ser a televisão, pude eu compensá-las com a descoberta do
desporto. Tanto o meu pai, sócio do Belenenses, como os meus tios, um do
Benfica e outro do Sporting, gostavam de ir ao futebol e cedo me arrastaram,
pelo que concentrei aí boa parte das viagens pelo meu imaginário infantil.
A caminho das Amoreiras, do Lumiar e mais frequentemente das Salésias – por
causa do Matateu – em percursos feitos a pé, as conversas dividiam-se entre a
identificação das marcas dos carros parados na rua e a constituição provável
das equipas. Mas cá o rapazinho pensava big e um dia perguntou: “Pai,
quem manda mais, o Salazar ou o Presidente da República?” Ele mentiu-me, com
pudor: “O Presidente, claro.” E eu, pateta: “Então, quando for grande, quero
ser presidente!”
Não sonhava sequer que acabaria a vida a ver futebol e que um
palerma, capaz de ficar meia hora a olhar para uma grua de Meccano, não
dispõe da inteligência, da sagacidade, da lucidez e da capacidade de ação
exibidas pelo Presidente.
Obrigado, meu Deus, por me fazeres estúpido.
Observador, crónica publicada na edição impressa da Sábado de 27 dezembro 2012