De manhã, caminho pelo bairro onde
moro. Para comprar jornais, tomar café, passar no multibanco ou ir ao
supermercado que por acaso é mini. E para obrigar o músculo cardíaco a trabalhar
antes que ele se desabitue, uma preocupação que os médicos me obrigam a ter e é
se quero. Nessas deambulações, dedico-me ainda a uma atividade recorrente nas
minhas rotinas diárias: observar comportamentos, tentar perceber o que fazem as
pessoas, ter até a pretensão de descobrir se viverão angustiadas ou se serão
felizes.
Como em todas as regras, existe
nesse voyeurismo uma excepção: os
torturadores de cães. Aqueles sujeitos estranhos que querem demonstrar o seu
amor aos animaizinhos – sujeitando-se ao frio da alvorada para os levar ao
chichi, conspurcar a via pública e inutilizar os espaços verdes que deviam
servir as famílias e em particular as crianças – mas que os enjaulam depois no
espaço exíguo dos apartamentos ou, pior, nos dois ou três metros quadrados de
uma marquise. Por esses, passo como cão por vinha vindimada, ou seja,
rapidamente e sem lhes dar confiança.
O prato-forte do meu percurso é
composto pelas empregadas domésticas, perto de se constituírem em associação,
tal a afluência que já se verifica nos seus meetings matinais. As brasileiras
dominam ucranianas, moldavas ou cabo-verdianas, tanto em número como em
capacidade histriónica, pois riem-se bastante e falam pelos cotovelos. São
extrovertidas, nelas já não há vestígios de sangue português. Quase todas essas
amostras de patrão fora levam crianças a passear, pela mão ou em carrinhos,
muitas trazem sacos com pão acabado de adquirir, umas fazem-se acompanhar pelos
inevitáveis canídeos, que dominam à trela curta – técnica recolhida no Domador de Cães, da SIC Mulher, em horário
laboral –, outras seguram apenas as chaves, inquietas, a dar a
dar.
O patronato é o tema, as queixas
cruzam-se, ouve-se por vezes um tom mais acalorado, uma pequena revolta ecoa.
Afinal, com tantos ricos-tesos a pouparem o dinheirinho dos colégios, elas fazem
hoje duas em uma: assistentes de limpeza e educadoras de infância… por um
único salário. Julgam-nas parvas, mas elas não são. O problema é a conjuntura
que não lhes deixa saída. Por isso, o silêncio sempre se instala, por momentos,
até à intervenção seguinte, e a atenção recai, enfim, no miúdo que tropeçou e
desatou a chorar ou no bebé de fralda por mudar, que tresanda e berra sem
intervalo.
O meu problema é que passo
depressa ao quarteirão seguinte, só consigo ir somando dois mais dois, e nunca
ouço a parte mais negra, a cor-de-rosa, em que entram as queridas patroas.
Quando me reformar, vou ser assinante.
Observador, crónica publicada na edição impressa da Sábado de 12 janeiro 2012. Tema de Sociedade da semana: conversas de empregadas domésticas