Alexandre Pais

Crónica do tempo em que o abade era o dono da bola

C

Nos anos 50, Portugal era outra coisa, e já pouco, muito pouco resta desse país pobre e atrasado. No interior, a modéstia dos recursos era total. Recordo particularmente o interesse dos miúdos nas famosas coleções de fotografias de jogadores de futebol, uns cromos de papel barato enrolados em rebuçados da pior qualidade e que depois se colavam numa caderneta com o miolo de batata assada a fazer de cola.

A equipa dos adolescentes: Daniel, Zé Palhinha, Ilídio, Moura, Tonito Sousa, Sampaio, Herculano e o abade Domingos Dinis de Sousa, em pé; Eduardo Corretes (?), Hortêncio (?), Tino Felizardo, Avelino e Míscaro
A concorrência era enorme porque só um felizardo completaria a coleção – havia apenas uma foto de determinado jogador, designada como o boneco da bola – e o contemplado recebia então do comerciante que vendia os cromos uma bola de cauchu, talvez a melhor prenda que um rapazinho poderia desejar – nas ruas, pontapeavam-se bolas feitas com trapos. Até porque a partir desse dia todos os amigos dependiam da sua presença para praticar futebol. Os jogos começavam mal ele chegava ao local combinado e terminavam por decisão sua – normalmente quando a equipa em que se integrava estava a perder ou se não o deixavam marcar um penálti, ou quando a mãe vinha chamá-lo aos gritos. É daí que vem a expressão dono da bola. 
Os putos: Óscar, Armando, Orlando, o escriba, Ricardo Felizardo e Sampaio, em pé; Cavaquinho, Tonito Sousa (?), Alberto Batoquinho, Míscaro e Félix Cabeças
Sempre atento ao que poderia fazer para que as crianças acorressem à catequese com entusiasmo, o padre Domingos Dinis de Sousa, da paróquia de Canas de Senhorim, comprou uma bola e com isso arrastou dezenas de miúdos para correrem atrás dela nos dois campos de terra da freguesia. Eram momentos emocionantes, em que o senhor abade escolhia as equipas e arbitrava depois os desafios com rigor e autoritarismo, em especial quando o extremo Míscaro – que ficou com essa alcunha para a vida dada a sua baixa estatura – abusava da paciência dos defesas duros de rins, como o escriba e outros calmeirões de 9 ou 10 anos, e tinha de ser agarrado, ou até derrubado, para não entrar com a bola pela baliza dentro.
Mais putos: NN, Avelino, Carlos Cardoso, Zé Palhinha, Carlos (filho do Fernando motorista) e Orlando, em pé; Carlos C., Míscaro, NN, António Cardoso (Fininho) e Ilídio
Nesse Portugal de coitadinhos, em que ao meio-dia tocava para a sopa dos pobres e havia muita gente de pé descalço – alguns miúdos só calçavam as botas de ir à missa ao domingo para poder chutar o cauchu – a ação da Igreja católica foi decisiva para minimizar os efeitos da miséria. Lembro-me da bicicleta do abade, de senhora por causa da batina, usada pelo coletivo até que se esvaziassem os pneus… Tempos duros mas também únicos, que revivo aqui de novo com fotos do Amadeu Soeiro, um dos bravos do pelotão.
Parece que foi ontem, Sábado, 20JUL17

Por Alexandre Pais
Alexandre Pais

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