Descansar
(último post da Teresa, publicado em 27 de abril de 2015, no seu blog Ponto Final)
Continuo viva. “Ressuscito” com alguma frequência. Houve aí um dia ou dois em que praticamente morri, e não me pareceu mal. Há alturas em que o fim do pesadelo é uma opção muito simpática.
E é quando embato no desistir/não desistir.
Tenho ou não esse direito? Depois de tantos anos de luta e sofrimento acabarei como aquela que desistiu? Será essa a memória final?
Prometi a mim mesma, há alguns anos, que o maior legado que iria deixar à minha filha seria o exemplo da determinação, da luta, do ultrapassar as dificuldades, do nunca desistir…
E agora, vou até ao fim numa luta que está para acabar ou deixo-me descansar tranquilamente?
T.
Posts do blog Ponto Final – 2015
Não perdi guerra nenhuma
(publicado em 8 de março de 2015)
A coisa não tem andado fácil. O meu estado físico está em declínio e são cada vez menos os dias em que me sinto inteira. Ou são dores de cabeça, ou são dores nas pernas, ou não consigo comer, ou não consigo digerir o que como; ou é uma fadiga extrema ou outra mais ligeira, não interessa, há sempre algo a incomodar. Na verdade, já não sei o que é estar bem há algum tempo…
E assim vou vivendo, agora sim um dia de cada vez, abafando as expectativas, sufocando os laivos de esperança que, volta e meia, se acham no direito de tentar contrariar a ciência. Mas o prognóstico, antes do fim do jogo, começa a ser implacável e, nos consultórios médicos, o incómodo já é mal disfarçado.
Passando à prática, há pedidos que quero deixar aos amigos. O primeiro faço-o hoje, aqui: não me tratem por guerreira; não digam que após uma luta brava não consegui vencer o cancro. Amigos, não há, em rigor, luta nenhuma, não há cá coragens nem meias coragens e, portanto, não há perdedores, assim como não há vencedores por capacidades próprias.
Até parece que quem luta a sério, ganha; que quem acredita, ganha (o sonho comanda a vida uma ova)… É muito injusto… Trata-se, isso sim, da lotaria da vida, nada mais do que isso. E eu sou, ou fui, apenas, uma pecinha de um jogo que nunca quis jogar nem realmente joguei.
E eu não sou uma pessoa fraca; caí mil vezes e outras tantas (menos uma) me levantei, nunca deixei de me rir e brincar nem de me entregar a todas as mãos que, em determinado momento, me pareceram que poderiam fazer algo por mim. Nunca me dei por vencida mas desde o primeiro minuto soube que tinha uma doença incurável e que uma doença incurável é isso mesmo, nada mais nada menos do que dizem as palavras. Não podia, por isso, aceitar todos os “vai ficar tudo bem” que, certamente com amor e amizade me dirigem, os “acredita” que, de algum modo, sinto que me exigem…
Tenho dado o meu melhor mas não sou guerreira, não perdi batalha nenhuma… O que eu realmente perdi foi muito mais do que isso, mas fica para outra conversa.
T.
Saudades
(publicado a 1 de fevereiro de 2015)
A saudade é-me estranha.
Era um dos meus sentimentos-chave. Sofria que me fartava com as saudades mais ínfimas. As férias escolares de verão, por exemplo, devastavam-me. Não descansava enquanto as aulas não recomeçavam. Com o basquete, a mesma coisa, não suportava o mês de agosto, o único em que não havia treinos. Logo, não havia amigos, não havia nada.
Quando estive um ano fora, senti saudades de quem ficou cá. Mas não doía. Estavam aqui, estavam bem, eu voltaria… Tudo ok. No regresso apressado, virei as costas a meia dúzia de pessoas com quem tinha criado laços fortes. As duas mais importantes, que não vi durante mais de uma década, com tanta dor, o meu coração esqueceu-as. E foi assim que descobri como suportar as saudades. Matá-las. Matar as saudades, literalmente.
O meu cérebro assassino ocupa-se da tarefa. Quando perco alguém que adoro, ela acaba com a dor.
E foi assim também no dia em que a minha avó Elisa foi viver para o Algarve. Fui criada com ela em criança, vivi com ela na adolescência e, naquela altura, ia lá a casa todos os dias. Almoçava, levava amigos (que ela tratava de adoptar como netos), íamos ao café, ela falava muito, eu ouvia-a a contar as mesmas histórias vezes sem fim, amarguras de infância que uma longa vida não apagou e que viveu até ao fim. A perda precoce da mãe, a saída da escola, o ter ido servir numa casa onde havia crianças (a quem ela carregava a mala até à escola e voltava depois para limpar os quartos), a morte de irmãos, as infidelidades do meu avô, o filho que adorava e que o meu avô havia maltratado… Andava sempre à roda, sempre a sofrer, sempre a pensar como teria sido bom terem sido todos felizes.
Era a mais boa pessoa que conheci na vida. Foi tudo para mim. Em momentos em que outros me faltaram, ela estava lá. Foi avó, foi mãe, foi pai, foi amiga, foi a melhor bisavó do mundo, foi tudo mesmo. Poucas pessoas teriam merecido mais a felicidade, que ela nunca teve mais do que fugazmente. E, naquele dia em que partiu para o Algarve, comecei a perdê-la. A dor era tanta que não lhe telefonava, imagino como terá sofrido também com saudades minhas. Nunca se queixou das minhas ausências. Dizia que eu estava sempre no seu coração, telefonasse ou não.
Desculpava-me tudo. Amava-me infinitamente.
Hoje, que ela partiu de vez, voltaram as saudades, desta vez são tão grandes mas tão grandes que nem o meu cérebro as consegue amaciar, quanto mais matar. Também sinto remorsos, muitos, por todas as minhas falhas para com ela. Merecia que eu, nos últimos anos, lhe tivesse dado muito mais, ouvido muito mais. Amar eu amava-a, mas sufocada de dor numa masmorra qualquer lá para os lados do coração, que agora se abriu para me conduzir à terrível verdade de que não voltarei a vê-la, nem poderei corrigir os meus erros. E irei de viver esta saudade para sempre, assumindo toda a dor que ela acarreta.
Espero desesperadamente que exista a tal outra vida, onde ela estará à minha espera quando o cancro me levar.
T.
Coisinhas
(publicado em 24 de janeiro de 2015)
Sempre detestei o poucochinho. Sou mulher de um bom tudo ou nada.
Mas tenho aprendido a apreciar o valor de coisas pequenitas, quase insignificantes, algumas delas até más mas que à luz de outras parecem boas, coisas desprezíveis para a maior parte das pessoas… E como eu queria viver essa ignorância também…
Damos por certo o falar, o comer ou o acto de andar. Mas nada é certo. Há pouco tempo, tive uma paralisia na língua – felizmente, reversível – e percebi como ela é grande, como estorva quando não serve, como humilha quando não se deixa usar… E assim por diante, com todas as funções do corpo. Deixem elas de colaborar, seja lá pelo que for, e é o cabo dos trabalhos.
Acordar sem náuseas, uma benção. Não ter dores de cabeça, outra. Falar e conseguir comer, bestial, não ter dores nas pernas e arranjar energia para caminhar 100 metros, fantástico. Ir fazer um exame para descobrir qualquer coisa horrível e não nos magoarem na picada do contraste. Tão bom!! Quem se importa com a picada? Eu importo-me. E gosto, além disso, de receber um sorriso e uma festinha na cara, como aconteceu da última vez.
São tantas as coisinhas, as merdinhas, as insignificâncias que afinal existem, que afinal contam, que importam…
Ainda gosto de um bom tudo ou nada mas há em mim um novo eu que insiste em me confundir e atrapalhar as ideias.
T.
Ameijôas e morfina
(publicado em 6 de janeiro 2015)
Não há muitos dias assim.
Acordei nauseada e com fortes dores de cabeça. Comi e vomitei de imediato. O Júnior foi comigo ao hospital, fiz análises, estavam boas, até melhores do que as anteriores (?). O exame à cabeça não revela causa para as dores, que começaram há meses e, desta leva, persistem há semanas. Há que fazer mais exames.
Entretanto, e como as dores não passam com analgésicos “normais”, passei à consulta da dor. E chegou a morfina, aquela que bate forte na cabeça e no coração dos doentes de cancro. “Coitado, já está a morfina”. Sou eu agora, também, uma das coitadas. Mas mais coitada sou com dores de cabeça excruciantes. Venha a moca.
Terminadas as “hostilidades” no hospital (onde não podia ter sido mais bem tratada mas de onde sabe sempre bem fugir) deu-me a fome. O enfermeiro-chefe (hoje reganhou o título) levou-me a um restaurante aqui perto de casa onde comi umas belas ameijôas que me souberam a pouco e que não vomitei.
Durante o resto do dia, não houve nem mais dores nem mais vómitos. Fiquei na dúvida: ameijôas ou morfina? Enquanto der, fico-me pela primeira. Quanto me estrear na segunda, logo conto como foi.
T.
Dia 2
(publicado a 2 de janeiro de 2015)
Hoje almoçámos num japonês, a Jô e eu. Novidade! A minha filha abre-se a novos sabores, eu aproveito a companhia.
Pensar que quando o pesadelo começou ela tinha 5 anos e hoje, aos 12, estamos a duas a almoçar sushi e sashimi, leva-me a dar graças, muitas graças pelos maravilhosos anos que temos tido juntas.
Logo que a Joana nasceu eu percebi que deveria ter começado a ter filhos muitos anos antes. Não aconteceu… Mas felizmente ainda tive a oportunidade de viver este papel, certamente o maior, o melhor, o mais gratificante de toda a minha vida.
Grande companheira! Feliz, corajosa, amiga do seu amigo, refilona com a mãe, emotiva, carinhosa, inteligente… um sem fim de coisas boas que têm feito de mim uma mãe muito orgulhosa e uma pessoa muito melhor.
T.
Dia 1
(publicado a 1 de janeiro de 2015)
Não tomámos banho mas fomos à praia. Estava um dia lindo, a não desperdiçar. E espero assim ter dado o mote para 2015: aproveitar tudo ao máximo, todos os minutos, todas as oportunidades de me sentir bem e feliz. Porque a felicidade é feita de momentos, por vezes demasiado breves, há que descobrir os bons e não os largar. Mais do que um prazer, nesta altura da minha vida, é mesmo uma obrigação, que tentarei cumprir.
A primeira foto do ano é com o Júnior, o companheiro de todas as horas. Se um casamento já é uma tarefa difícil de levar a bom porto, um casamento com uma mulher com o meu feitio e na minha situação só pode ser perto, muitas vezes, de um pesadelo. E ele ali está, a fazer da minha vida um pesadelo ainda maior do que já é, com a sua recusa em desviar-se daquilo que decretou como missão: não nos deixar cair em desgraça, não se deixar cair em desgraça.
Uma irritação. O homem não se lamenta, o homem não chora, o homem não desespera com o presente nem sequer com o futuro, não falta ao trabalho para andar comigo ao colo, o homem não larga os jogos de futebol na TV, uns atrás dos outros, o homem não deixa de tocar bateria, o homem não para para chorar comigo, para falar sobre a minha morte, sobre o que nos desgraçou a vida, sobre como a nossa filha sofrerá quando o cancro me ganhar, sobre como ele sofrerá…
E assim, com este comportamento, lá me obriga a levantar-me e ir acordar a miúda, a tratar dela e de mim, e dele às vezes também, a ir buscá-la à escola nos meus dias, a ir à compras, a fazer almoços e jantares, a trabalhar e a divertir-me, a jantar fora, a ter amigos e vida própria, quando tudo o que faria sentido era passar o dia na cama, a dormir e a chorar a minha sorte. Raios partam o homem!
T.