Formamos calões
e não trabalhadores,
substituímos a decência
pela falta de escrúpulos
Confesso que errei. Quando ouvia o Mário Crespo a fazer as mesmas perguntas e Medina Carreira a dar as mesmas respostas, na SIC Notícias, mais minuto, menos minuto mudava de canal. Não devia ser só eu que perdia a paciência para ouvir lengalengas despeitadas e persecutórias. Mas tal como a mentira, que tem de ser mil vezes repetida para se transformar em verdade, também a realidade que não nos entra logo pelos olhos dentro precisa de ser mil vezes explicada para que admitamos, no mínimo, reflectir.
No caso do Plano Inclinado – que se poderia intitular Plano Inquinado, já que se inclina sempre para o mesmo lado –, foi a participação de João Duque, com o seu discurso sereno e equilibrado, que me fez começar a desconfiar que talvez houvesse bondade e razão naquelas palavras. Depois, ao aparecer Silva Lopes, que critica mas não encarreira, essa desconfiança cresceu. Mas estes tipos não podem estar assim tão unidos no contra, não iam faltar à verdade por questões pessoais ou políticas e todos a uma voz, pensei.
Faltava a cereja no bolo, colocada no último fim-de-semana, com a participação de Ernâni Lopes no programa. Quando esse Shrek, alto e de penteado igual ao meu, fala, este Burro Falante ouve com redobrada atenção. Não é por mais nada, apenas porque há 20 e tal anos houve um ministro das Finanças que, com a inflação a atingir os 30% – sim, t-r-i-n-t-a-p-o-r-c-e-n-t-o –, salvou Portugal da bancarrota. E foi ele, Ernâni sem h e de colarinhos de pontas teimosamente juntas, o mesmo que não só confirmou agora o que eu julgava não passar de medinascarreirices como deu uma lição de economia, preocupante e magistral, que não impressionou unicamente a minha ignorância, pois João Duque recomendou-a aos supostos entendidos que gravitam – para desgraça nossa e pesadelo do País – na esfera do poder.
Resumindo: estamos tramados. Primeiro porque novas medidas de austeridade terão de se somar às últimas, que são insuficientes. Depois porque adiantaremos pouco com isso, já que o nível do endividamento será insuportável a partir de 2013, quando julgávamos – é o que nos vendem – que a coleira iria alargar. A seguir porque ao pobre crescimento actual se seguirão anos de empobrecimento – 3% ao ano (!) prevêem os especialistas inclinados – que levarão à falência do Estado social. E finalmente porque a hipotética recuperação da economia estaria sempre dependente do aterrador problema de hoje da sociedade portuguesa: formamos calões e não trabalhadores, substituímos a decência pela falta de escrúpulos, não conseguimos fazer com que dois mais dois sejam cinco, ou até seis. E a matemática é uma ciência implacável.
Crónica publicada na edição impressa da Sábado de 17 junho 2010