Portugal jogava com
caricas de Laranjina C
e a Espanha com tampas
de cerveza San Miguel
Não, não quero que ninguém me deixe em herança qualquer colecção, a não ser que seja de barras de ouro, está bem de ver. Nunca fui rapaz de juntar nada de significativo, quanto mais não fosse porque me via invariavelmente confrontado com o futuro: um dia, como resolveria o cancro, progressivo e imparável, do armazenamento da propriedade?
Quando era miúdo, o meu vizinho do lado, agente da Polícia Marítima, gastava quase todo o tempo livre a organizar a colecção de selos da filha, uma médica que não se preocupava com tais ninharias. E eu punha-me lá, embasbacado, a vê-lo segurar a lupa com o sobrolho, a analisar detalhadamente cada unidade, a metê-las em pastas – por anos, por temas, por nacionalidades –, a guardar as pastas em caixas arquivadoras, a colocar as caixas nas prateleiras, demasiadas prateleiras para uma casa tão pequena.
Em determinado período da adolescência, passei a andar de nariz no chão para apanhar caricas, as precursoras do subbuteo. Com elas, constituíam-se equipas e praticava-se uma espécie de futebol-de-mesa, com uma bola feita de pratas de chocolates. Recordo uns sensacionais Portugal-Espanha, no tapete da sala, com os nossos jogadores representados por tampinhas de Laranjina C, e estando a vizinhança entregue a caricas da cerveza San Miguel, recolhidas como se fossem pepitas, a garimpar nos passeios de cimento de Badajoz. A espanholada era crónica vencedora, graças às suas poderosas tampas, que tinham no interior um material mais pesado que a lusitana cortiça e rematavam, por isso, com maior violência e melhor direcção.
Um dia, o meu pai, que desistira de uma colecção de copos com inscrições de marcas, em especial de restaurantes, precisamente por ter sido confinado pela minha mãe a um único armário, achou que o rapazinho já não tinha idade para jogar às caricas e submeteu-me ao desgosto de lhes dar sumiço.
Só mais tarde, com a chegada do jornalismo, voltei a ser coleccionador e… de papéis. Não é que guarde tudo, não vou criar um centro de documentação, mas a profissão impõe-nos alguns cuidados, até porque a memória de certas pessoas precisa, por vezes, de ser avivada. E no meio de tanta papelada nasceu, quase sem eu dar por isso, um razoável espólio de edições número 1 ou de exemplares mais ou menos históricos, que de vez em quando consulto, também na tentativa de evitar que se degradem sem remédio.
Ora aí está uma boa herança, com laivos de cultura, como convém a um não-intelectual como eu. Imagino até a felicidade das minhas filhas, desaparecido que seja o rapazinho, a atirarem aquela tralha toda para o lixo.
Observador, crónica publicada na edição impressa da Sábado de 25 novembro 2010. O tema da semana de Sociedade era sobre heranças insólitas, como a de um sportinguista que colecionava leões…