Pertenço a uma geração demasiado
marcada pelas dificuldades suportadas pelas anteriores, atingidas por períodos
de guerras mundiais e pelas revoluções dia sim, dia não, que antecederam, em
Portugal, o advento do Estado Novo. Nesses tempos, contava-me o meu pai, o
desemprego era brutal e o abastecimento deficiente, mesmo caótico, existindo
filas imensas, e até senhas de racionamento, para se comprar pão. Daí que eu
sentisse em casa, desde muito pequeno, uma forte pressão para que tivesse
boa boca, ou seja para que
gostasse de tudo e comesse o que me pusessem à frente. Vejo hoje as minhas
filhas mais novas, com manias infinitas no que respeita aos alimentos, e
verifico que, também aí, o Planeta em que vivi
desapareceu.
Tive a sorte de serem simples as
preferências dos meus pais e dos meus avós, que não apreciavam comida pesada,
condimentada, ou apaladada, como
se dizia, e raramente me sujeitaram a surpresas desagradáveis. Mas lembro-me que
os bifes não eram enormes, que não existia ainda o hábito das saladas, que o
açúcar e a manteiga se usavam com moderação, que a fruta não abundava, enfim,
hábitos herdados da miséria do início do século 20, e na crença de que a
desgraça se escondera apenas atrás da porta e que portanto voltaria. Ah, e
pormenor importante, comia-se sempre com pão, porque, percebi mais tarde, isso
compunha o estômago, tal como a
sopa, que era obrigatória – e que em muitas casas antecedia o prato principal,
para prevenir excessos. Essa técnica permitia depois encurtar as doses do
chicharro ou das costeletas, do frango, das salsichas ou da carne assada. A
economia doméstica impunha uma gestão rigorosa dos escassos recursos e
sobrepunha-se ao resto. Estamos agora a regressar a essa ditadura das donas de casa, que voltam às
cozinhas para evitar desperdícios. Nem temos outro
remédio.
Aprendi a comer de tudo mas não
gosto de tudo. Há, aliás, comidas que não suporto, nem consigo sequer ver os
outros comer. É o caso de um horror com que fui confrontado em miúdo, a
tenebrosa mioleira – que desenvolveria a inteligência, coitadas das crianças –
misturada com ovo, uma coisa abominável.
Conforme fui crescendo pude
libertar-me dessas grilhetas mentais, embora mantendo até hoje a visceral
aversão a que se compre mais do que se necessita e a que se deite para o lixo,
porque nos sobra, o que falta a outros. Posso, isso sim, assumir livremente os
meus enjoos de estimação: arroz de cabidela e de lampreia, dobrada e cabeça de
pargo, ovas e leitão, pezinhos e moelas, coelho e caviar, chispe e ostras,
castanhas cozidas e favas, orelha de porco e dióspiros. E etc, muitos etc.
Fizeram de mim um esquisito, foi o que foi.
Observador, crónica publicada na edição impressa da Sábado de 8 março 2012