De todas as profissões que admiro, há duas, a de professor e a de polícia, que me merecem particular apreço, talvez por me considerar incapaz de as desempenhar. Curiosamente, detestava-as antes de 1974 porque os seus agentes interpretavam, com frequência, casos de abuso de autoridade, e só tenho pena que não sejam as bestas desse tempo a responder por isso, ou seja, a suportar os maus tratos que recaem hoje sobre os agentes de ensino e de manutenção da ordem pública. Enfim, como sabemos, a vida não é justa.
Como em quase todos os sectores de actividade, na educação passou-se do oito para o oitenta e a minha ideia só pode ser pálida sobre a pressão, e diria mesmo o sofrimento, a que um professor está sujeito nos dias que correm. Passou-se do estilo prepotente e inúmeras vezes violento – vi jovens, de 8 ou 9 anos, na escola primária de Canas de Senhorim, e de 14 ou 15, nos Salesianos do Estoril, a serem brutalmente espancados – para a situação contrária, em que são os supostos estudantes a insultar e a agredir os supostos educadores. Portugal está de pernas para o ar e pior ficará durante e após, se após houver, a terrível crise social que atravessamos.
Apesar das agressões, protagonizadas em regra pelo padre Miguel – um excelente treinador de hóquei em patins, quem diria –, gostei de ter frequentado a escola salesiana. Praticávamos muitas modalidades desportivas e tínhamos excelentes professores. Alguns eram sacerdotes, de diversas nacionalidades, e do melhor que conheci em termos pedagógicos. Outros, leigos, revelavam menor capacidade e havia um, então, que especialmente me irritava. Leccionava Física, dava-me sempre negativas e ainda por cima olhava para mim com um ar arrogante, como se dissesse: “Passas o tempo a jogar à bola, ora toma lá mais esta.” Que anormal, pá.
Mas eu e outro cábula descobrimos o calcanhar de Aquiles dos docentes que não eram padres: não pernoitavam no colégio. E num final de tarde fomos atrás do de Física até à estação. Queríamos perguntar-lhe porque perseguia ele duas cabecinhas tão válidas como as nossas. Quando chegou à gare e nos viu, o prof entrou em pânico. Em vez de regressar à escola, subiu a Marginal na direcção do antigo Hotel Paris e entrou numa barbearia.
Teve azar porque estava na hora de fecho e depressa ficou cá fora. As pernas tremiam-lhe e gaguejava, de arrogância já nada se via. Calões mas tementes a Deus e a Salazar, aceitámos as suas explicações com a promessa da não denúncia do caso ao padre Miguel. Nos meses seguintes, continuei a jogar à bola e a apanhar negativas a Física. O professor tinha medo, mas era um homem.
Observador, crónica publicada na edição impressa da Sábado de 8 setembro 2011. Tema de Sociedade da semana: partidas a professores