Alexandre Pais

Chegámos a isto – 1

C

1. A minha filha
mais nova recomeçou a escola na última segunda-feira e eu perdi não só a
companheira deste verão como tive pela primeira vez a sensação de que estou
desempregado – Nuno Santos tem razão, não devemos ter medo das palavras. Três
crónicas semanais e um comentário na televisão ao domingo dão para a cova de um dente, estúpida expressão,
de quem se especializou a puxar carroças,
outra maravilha da linguística popular. Mas dadas as circunstâncias, da
economia e da profissão, sou um privilegiado. Continuo no ativo e a viver de
uma reforma dita de luxo, que já é metade do que seria há meia dúzia de anos e,
mesmo assim, ainda me roubam de novo metade.

2. Fui há dias,
suponho que pela 20.ª vez, à PSP de Alcântara, por causa de um processo
relacionado com suposta violação de liberdade de imprensa. Estavam 35 graus na
rua, à sombra, mas bem mais dentro dos cubículos de 5 ou 6 m2, refrescados por velhas ventoinhas, onde
os agentes se veem forçados a atender as pessoas que têm de ouvir. São
condições de trabalho indignas e uma tortura para funcionários e cidadãos.
Inacreditável.

3. Não
seguramente por falta de ar condicionado mas de pessoal, do tal que haverá aos montes sabe-se lá em que serviços,
renovar a carta de condução constitui igualmente uma descida aos infernos. O
Instituto da Mobilidade e de não sei quê – uma pretensiosa denominação que a
eficácia desmente – obriga os interessados a irem madrugar para as filas dos
centros caso queiram receber o documento revalidado daí a vários meses.
Chegámos a isto, a crise tem as costas largas.

4. Mas onde a
irresponsabilidade e a incompetência atingiram este ano o cume foi no Algarve.
Da poluição em diversas praias ao lixo acumulado nas ruas, passando por pragas
de insetos e de coletores rebentados, tem havido muito de tudo. Num verão em
que o aumento de turistas resultou num bálsamo para comerciantes e industriais
de hotelaria e de restauração, calcule-se o êxito da propaganda word of mouth que aquela gente fará no
regresso a casa. Até a nossa maior exportação, a de sol e de mar, uma bênção
para um país falido, os senhores autarcas desprezam. São sorrisos nos cartazes,
obras nas fachadas, lixeiras e melgas nas traseiras. Seria de esperar que no
dia 29 tivessem a resposta que esse belo postal justifica, mas já sabemos o que
a casa gasta.

5. Creio que
todos conhecemos a indústria que prospera por detrás dos anúncios em que homens
e mulheres dizem procurar, uma
atividade que milhões de casas de massagens nunca conseguiram aniquilar. Encaro
o fenómeno com um misto de desprezo pelo que representa e de respeito pelas
vítimas. Afinal, um desprezado é um morto de fome e como tal é digno de dó.

Observador, crónica publicada na edição impressa da Sábado de 12 setembro 2013. Tema de Sociedade da semana: anúncios de casamento

Por Alexandre Pais
Alexandre Pais

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