Alexandre Pais

Na morte de Manuel de Brito, dois textos magníficos sobre uma vida extraordinária

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Na morte recente de Manuel de Brito, grande figura da cultura portuguesa, muito pouco foi escrito sobre o seu percurso de vida. Não porque a dimensão intelectual do desaparecido não o justificasse, muito pelo contrário, mas simplesmente porque muitos dos seus amigos sabiam pouco e para as novas gerações de jornalistas a ignorância é mãe e a memória madrasta.
Tive o prazer de trabalhar com o Manel e o privilégio de lhe poder dedicar a minha última crónica das segundas-feiras no diário “Record”, jornal do qual foi dedicadíssimo colaborador (e impulsionador de vendas, com o poder do seu talento!) na primeira década do século – o Benfica pode muito, é verdade.
Hoje, reproduzo aqui, com a devida vénia, os textos assinados por Diogo Vaz Pinto e Joana Morais Varela, publicados no site do “i”, e cuja leitura nos permite conhecer um pouco mais da vida extraordinária de Manuel de Brito. E entre muitas outras coisas – da Pastelaria Cristal, na Rua Buenos Aires, onde a mãe do Manel seguramente se cruzou com a minha, à atriz Teresa Gafeira, a “fada boa” dos últimos anos, que referi no meu texto e por quem tenho especial simpatia sem a conhecer e sem poder explicar porquê – que já sabia ou que passei a saber, o sentimento com que fico é o de uma saudade ainda maior…
 
Manuel de Brito (1950-2019).
O editor trama o contexto e sai pelos fundos

Contra o esquecimento, essa margem onde o editor da Contexto sempre se moveu, tentando empurrar para a nossa atenção obras de excepção, lembramos os 25 anos de um catálogo de peso na nossa edição literária.
Vigorou por um bom tempo o acordo que tínhamos com a palavra, essa que – diz-nos Claudio Magris – continha e, ao mesmo tempo, inventava a realidade. Depois, o próprio tempo rasgou o velho trato. E hoje, se nem a morte parece ter algum prestígio – tendo-se tornado “genérica como a gramática” –, o que dizer destes dias, nos quais vivemos como de sobras. Morreu na madrugada de sábado, aos 68 anos, o editor Manuel de Brito. Um cancro na pele diagnosticado em 2014 levou a que, depois de um progressivo desejo de se refugiar, nos últimos anos, e por entre os estalidos do silêncio, tenha persistido na leitura de uma fastidiosa crónica sobre uma guerra cada vez mais desigual. Terá ficado a meio da frase onde o seu próprio fim se lia. Será lembrado pela sua “personalidade vigorosa e versátil, vital e generosa” por aqueles que o conheceram e que não escondem também como podia ser um homem difícil, com um feitio que tinha algo de glacial. Mas é o empenho ao longo de 25 anos à frente da Contexto que fazem dele um dos protagonistas da edição literária em Portugal desde o 25 de Abril. Num tempo em que havia muito por fazer, Manuel de Brito criou um catálogo vasto, ambicioso, uma biblioteca que podia desenhar internamente uma casa opulenta, sustentando cada piso, demarcando as divisórias. As colecções parecem seguir um plano riscado por um galho na areia, ao mesmo tempo apaixonado e tosco, de uma editora que quis arranjar sustento para a sua aventura. Assim, houve margem para acrescentar algo à tradição, entre nós bastante tímida, dos livros de artista, tendo publicado na colecção Cábulas de Navegação, títulos como “O Corpo Verde”, de Maria Velho da Costa, com ilustrações de Júlio Pomar, a “Comunidade” de Luiz Pacheco, ilustrado por Teresa Dias Coelho, ou “Os Passeios do Sonhador Solitário”, contados por Almeida Faria a partir da ‘mise au tombeau’ de Mário Botas. Mas virar todos os canhões para um mesmo horizonte delirante é má política, e, para lá dos livros que garantem a perenidade do catálogo, mostrou um empenho hoje caído em desuso na edição de títulos que podiam vender muito, e venderam. Acolheu autores como Paulo Castilho ou Rita Ferro com sucesso na sua colecção de ficção, a par de outros, como Rodrigo Guedes de Carvalho e Nuno Júdice. Nalguns casos, a paixão levou-o a defender até à última autores a quem o público voltara as costas, como é o caso de Fernanda Botelho, que continua apagada como tantas outras ficcionistas de melhor calibre do que aquelas que hoje nos são impingidas nos balanços anuais dos suplementos.
Já na ficção estrangeira publicou as traduções de Saramago da escandalosa e brilhante Colette, e deu a conhecer Rubem Fonseca quando o autor estava longe ainda ser sinónimo de um acerado e truculento estilo, que faria dele um dos grandes nomes da literatura brasileira. Mas o filho, João Brito, também editor, diz que teve um particular orgulho em ter publicado o monumental “Bela do Senhor”, de Albert Cohen, com tradução de António Pescada, e o desgosto de o ver fracassar. Hoje raras e traficadas a preços proibitivos, as edições de poesia destacam-se, tendo publicado obras de Joaquim Manuel Magalhães, Helder Moura Pereira, Armando Silva Carvalho e, claro, Al Berto. Como reconheceu o seu “adversário” Paulo da Costa Domingos, nem ele na Frenesi nem, mais tarde, Manuel Hermínio Monteiro na Assírio & Alvim, fizeram tanto pelo sucesso público da obra de Al Berto. Num post no Facebook, Domingos prestou o seu tributo ao “notável catálogo de preocupação pela cultura portuguesa, construído numa Lisboa, ali à Estefânia”, lastimando o facto de ninguém ter assinalado a importância que teve Manuel de Brito no enriquecimento da nossa vida cultural.
O gosto pelo risco de Manuel de Brito acabaria por levar a que a Contexto partilhasse o destino das tantas editoras que se finaram na viragem do século, mas cujo legado ainda segura uma penumbra de resistência cultural, animando o negócio dos alfarrabistas. Ao ditar a ruína dessas aventuras, o mercado procedeu à concentração dos catálogos, e expulsou os editores ou transformou-os em capatazes. Com tantas baixas, hoje bem se vê a desmoralização num sector que em tempos se orgulhava de dar caça a esses “objectos que toda a civilização deixa atrás de si como a quintessência e o testemunho duradouro do espírito que a animou”.
Numa das suas crónicas publicadas no “Corriere della Sera”, Magris lembra-nos um poema do também editor Michael Krüger, em que fica claro o desamparo destes dias, em que “a História acelera e o Homem descobre-se lento, ultrapassado por aquele passo demasiado rápido que vai adiante, deixando-o para trás”. E cita alguns versos: “ Vemos a época glacial/ por trás, a Grécia/ Roma, a Revolução Francesa/ a nuca de Estaline, as luzes traseiras/ do automóvel de Hitler.”
O filho de Manuel de Brito – aquele que não resistiu a seguir as pisadas do pai, e que há semanas nos deu “Caminhadas com Robert Walser”, de Carl Seelig, um dos livros que, venha o que vier, não encontrará muitos rivais à altura na hora de destacarmos as edições mais relevantes entre o que se publicou este ano –, admitiu ao i que, hoje, encarando tudo o que o pai descobriu e fez como editor, lhe causa especial admiração a colecção infanto-juvenil. Estranha como um pai que muitas vezes o marcou pela ausência, parece, por outro lado, ter trepado tão alto à ameixieira, e tido instintos tão ousados, tão certos e encantadores no que toca à imensa vista que se tem desde a infância.
Talvez não leve a mal a indiscrição de partilharmos, aqui, um excerto da última carta de Jérôme Lindon ao filho, a qual foi ele quem nos deu a conhecer há alguns meses. “J’espère seulement que j’aurai le sentiment, le moment venu, de ne t’avoire causé aucun tort grave, ce qui me donnera le droit de te demander, en t’embrassant, de m’oublier.
No fim, de um editor que teve o mérito de publicar com a paixão de quem se confundia com o autor das palavras, talvez a ausência seja um desejo de ser esquecido, deixando só as coisas que amou. Voltando à crónica de Magris, ele questiona-se sobre o que faz este homem deixado lá atrás, “impotente mas vivo, aprisionado entre os despojos da História, como um líquen entre os gelos”. E diz-nos que ao poeta cumpre escrever os seus poemas, “versos fulminantes que matizam a realidade como as asas de um pássaro riscam o ar ou recortam com a sua sombra o espelho gelado de um lago, folhas que voam num temporal (…) [e] que sobrevivem a catástrofes e a cataclismos como fósseis antigos e perenes”. O editor, por sua vez, luta com o próprio tempo, a ponto de se perder nele. Como um prisioneiro que escavasse para que outros pudessem escapar. Um grande editor vive exposto ao fim, como se o esquecimento fosse já a sua morada.
NOTA BIOGRÁFICA, por Joana Morais Varela
Manuel Luís Baptista de Brito nasceu em Lisboa, a 25 de Dezembro de 1950, filho de Dolorosa e Manuel Augusto de Brito. O pai, natural de Sazes da Beira, concelho de Seia, na Serra da Estrela, viera trabalhar para Lisboa em finais dos anos 40. Tornou-se cabeleireiro, como o tio Monteiro, com estabelecimento na Lapa. Em breve se converteu na coqueluche não só da sociedade feminina lisboeta como também de intelectuais de esquerda como Fernando da Fonseca ou Pulido Valente. Jogava xadrez, fazia judo com o mestre japonês Kobayachi, nadava na Fonte da Telha. Instalado na rua de Santana à Lapa, o casal viu nascer o primeiro filho, Manuel Luís, no dia de Natal de 1960 e só sete anos depois se seguiria o segundo, Luís Manuel, a 1 de Dezembro.
Entretanto o pai, juntamente com o irmão Armando, estabelecera-se por conta própria, abrindo em 1951 o cabeleireiro Brito e Brito, no Chiado, a que se seguiu outro na Avenida da Liberdade e, sobretudo, o salão Eva, no Palácio do Marquês (todos eles com arquitectura de Eduardo Anahory). Este último ocupava todo um andar de mais de 300 metros quadrados e dirigia-se à «mulher moderna, que não tem tempo a perder». As próprias cadeiras das clientes tinham um sustentáculo para tomar uma rápida refeição. Manuel Brito tinha uma sala exclusivamente para si.
A infância de Manuel Luís foi encantadora, com uma mãe que o adorava (cf. testemunho dos antigos donos da Pastelaria Cristal, na rua de Buenos Aires), passando as férias de Verão em casa de pescadores na Fonte da Telha. Frequentou um colégio de ideias arejadas, o Pestalozzi, a que se seguiu o Liceu Francês.
Um acontecimento brutal veio, no entanto, interromper esta vida de sonho: adoecendo a mãe com um cancro na mama, o rapazinho foi internado no Porto, no colégio Brotero dos Dominicanos. Porém, aparte a doença da mãe, Manuel Luís guardava excelentes recordações da sua estada no Porto e das visitas que o pai lhe fazia regularmente.
Regressa a Lisboa aos dezassete anos, depois de a mãe morrer. Em breve está fora de casa, tendo encontrado no então jornalista de O Século Joaquim Benite uma espécie de segundo pai. Com ele fará teatro no Grupo de Campolide (na origem do Grupo de Teatro de Almada) – Fulgor e Morte de Joaquín Murieta – onde conhece a actriz Teresa Gafeira, sua dedicadíssima companheira na doença e nos últimos anos de vida.
Matriculado no curso de História, é obrigado a exilar-se em França para escapar à Guerra Colonial. Tem intensa actividade de animação cultural em Paris, donde regressa pouco depois do 25 de Abril de 1974.
Casa com Teresa Dias Coelho, de quem tem uma filha, Maria, e com ela vive um ano em Moscovo como tradutor. As condições sociais e políticas que observa na URSS mostram-se incompatíveis com o seu ideal de uma vida mais justa para todos, o que o leva a afastar-se do Partido Comunista e da mulher, órfã do herói antifascista José Dias Coelho.
Em breve se relaciona com a engenheira silvicultora Ana Ferreira de Almeida de quem terá um filho, João Maria, em 1982. Fundara, entretanto, com a mulher, a editora Contexto, sendo o primeiro livro publicado Feliz Ano Novo, de José Rubem Fonseca, autor brasileiro de ascendência portuguesa que, só muitos anos depois, seria amplamente conhecido entre nós. Seguiu-se O Outro e o Mesmo, de Luís Martins (o futuro Miguel Real), prémio de revelação em ficção da Associação Portuguesa de Escritores. A partir de 1982, em estreita colaboração com o Instituto Português do Livro, de António Alçada Baptista, a Contexto editará uma série de revistas fac-similadas (sendo a primeira Portugal Futurista) inicialmente do primeiro modernismo, mais tarde alargadas à Presença e à Távola Redonda.
Simultaneamente, Manuel de Brito lança, em 1982, a colecção Cábulas de Navegação com o texto O Corpo Verde, de Maria Velho da Costa, e ilustrações de Júlio Pomar. Na mesma colecção sairá Comunidade de Luiz Pacheco, ilustrado por Teresa Dias Coelho. Detecta-se já nestes livros a preocupação estética de Manuel de Brito, mais tarde bem visível na colecção Contexto e Imagem (a qual, para além de incluir traduções de textos publicados na Gallimard e respectivas ilustrações, se tornou inovadora ao incluir autores como António Alçada Baptista, Agustina Bessa-Luís ou Jorge Amado), na colecção dedicada às freguesias de Lisboa ou nos excelentes arranjos gráficos e fotografias de Paulo Nozolino das capas dos livros de Al Berto.
Em 1983, Manuel de Brito casa com Joana Morais Varela, de quem terá dois filhos, Luís Maria (n. 1986) e Maria da Paz (n. 1987).
Por dificuldades económicas, como todas as editoras em Portugal, a Contexto vê-se obrigada a encerrar a sua actividade em 2001, A partir dessa data, Manuel Luís de Brito isola-se cada vez mais numa pequena propriedade alentejana, tendo colaborado com o excelente cartoonista Luís Afonso (de quem já publicara dois álbuns) numa empresa, Dar o Litro, e na última década e meia, através de pequenos comentários gráficos, exercia crítica de costumes no Correio da Manhã e acompanhava o mundo do futebol. De resto, o Benfica, sua grande paixão, sagrou-se campeão nacional pela 37.ª vez, algumas horas após a sua morte.

Por Alexandre Pais
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