Os fãs de Lance Armstrong que, como eu, acreditam em lendas, não têm dúvidas: não fossem as duas quedas (e mais meia ainda), e o esforço que teve de fazer para se chegar à frente, após a segunda ida ao solo e imediatamente antes da primeira grande escalada do dia, e tudo teria sido diferente.
Mas os que, como eu, sabem que a história não se repete e que o destino não se desafia, têm também algumas certezas e, uma delas, é que aos 38 anos, e no ciclismo de alta competição, não se podem repetir os êxitos do passado.
E há, finalmente, outros como eu que se lembram de ver Joaquim Agostinho ganhar uma etapa mítica do Tour com pernas e braços tão escalavrados que, ao pé deles, os ferimentos de Lance não passam de simples nódoas negras.
Porque a verdade é esta, quando o fiel Chris Horner, companheiro e amigo de Armstrong, ficou para trás para tentar rebocar o seu chefe, após mais uma paragem para evitar a terceira queda, as pernas de Lance voltaram a não responder. E Chris recebeu ordem de partir, para chegar à meta com quatro minutos de atraso, mas com quase oito à frente do heptacampeão. E quando Armstrong não consegue acompanhar Horner está tudo dito. O ritmo penoso e conformado, quase de cicloturismo, com que terminou a etapa, é igualmente elucidativo.
Ao longo do seu reinado de sete anos, o mito norte-americano caiu tantas vezes como nesta Volta à França, em que já foi ao chão por três ocasiões. Também aqui tenho de recordar Agostinho, que se espalhou muitas vezes nas curvas dos Alpes e dos Pirinéus, e que se levantou sempre. Tinha 40 anos quando um cão se lhe atravessou à frente, numa estrada plana algarvia, e tombou para não mais se erguer.
Não é o fim da linha para Lance. Termina um ciclo, com os mais novos a imporem a sua lei, que é, afinal, a lei da vida. Ficam sete vitórias e oito presenças no pódio do Tour, marcas dificilmente batíveis. E fica o futuro pela frente, com ou sem ciclismo, para este atleta imortal que soube transformar um milionário arrogante igual a tantos outros num ser mais humano e mais solidário. Gosto dele assim.
PS – Uma palavra final para o brilhante trio de comentadores do Eurosport, que vaticinaram a chegada de Armstrong com “mais de 10 minutos” para o vencedor, quando seu atraso ainda era de 2 minutos e pouco, e que na mesma altura calcularam em “30 minutos” a diferença dos últimos sobre a meta. Pois o derradeiro pelotão de 30 unidades, liderado por Petacchi e com todos os outros sprinters, cortou a linha 32 minutos depois do vencedor. Notável. Vale a pena ouvi-los durante tantas horas, sem uma quebra de interesse. Chapeau!
Sprint curto, publicado na edição impressa de Record de 11 julho 2010