Lara Li teve a sorte
da coragem da mãe,
que lhe impôs o talento
à arrogância de Lisboa
Passam agora 30 anos sobre a entrevista possível que fiz a Lara Li para o diário Portugal Hoje. Possível porque a época era politicamente conturbada, mas também porque a artista que se afirmava – já a caminho do terceiro disco e com a agenda repleta de espectáculos pelo país – não tinha um feitio fácil, nem gostava de se expor. O futuro se encarregou de provar que não se tratava de um capricho, pois em três décadas não só escasseiam os depoimentos como se perdeu a cantora, pelo menos ao nível a que se supunha que a guindaria a sua voz magnífica e um estilo de interpretação muito próprio – a fazerem tremer os baladeiros que, em 1980, haviam entrado em agonia.
O discurso de Lara Li, claramente de extrema-direita, polvilhado embora por declarações contraditórias, pôs em risco a publicação da entrevista num jornal de forte influência socialista, para mais numa altura em que as clivagens políticas entre esquerda e direita, progresso e reacção eram ainda acentuadas. Valeu, lembro-me bem, o espírito aberto do jornalista João Gomes, director do título, que me autorizou a publicar o texto, perante a indignação de alguns radicais.
Ilídia Maria, Lara Li, regressara de Moçambique em 1975, na queda do império, e aos 21 anos tinha a postura típica do retornado que, deixando para trás anos de esforço e privações, tudo perdera sem entender porquê. Teve a sorte da coragem da mãe, que foi à luta e conseguiu convencer a Valentim de Carvalho, e a poderosa arrogância de Lisboa, do talento da filha.
Como seu admirador, lamentei o posterior afastamento da ribalta e o esquecimento em que veio a cair o seu fulgor. Mas julguei entendê-los sempre à luz da complexa personalidade de Lara Li e do seu ambíguo poder de sedução – que se impunha com intensidade, que subjugava mesmo, para logo se esbater num enigma de pequenos sinais que pareciam apontar para outras opções pessoais e, pelo que se viu, igualmente de carreira. Já há três décadas aquela mulher dura e sensual se pressentia complicada e diferente.
No pós-25 de Abril, fiz parte do grupo dos que gostavam de se intitular geração do sacrifício – por ter feito a guerra, por ter sido perseguida nas universidades, por não ter podido desfrutar da juventude numa sociedade livre e europeia. Mas passado o delírio ganhei consciência de como cruel havia sido a revolução para todos os que, como a família de Lara Li – e foram muitos milhares que não trouxeram sequer essa flor de esperança –, se viram forçados, pelos ventos da História e pela cegueira da ditadura também, é verdade, a desfazer as suas carreiras e os seus lares, a perder os seus bens, a destroçar as suas vidas. Curvo-me perante a dor daqueles para quem não sobraram cravos.
Observador, crónica publicada na edição impressa da Sábado de 2 junho 2010
Nota 1 – Estas crónicas respeitam. sempre que possível, o tema de sociedade da Sábado, que era, desta vez, um perfil de Lara Li
Nota 2 – Aos textos que publico na Sábado não é aplicado o novo Acordo Ortográfico