Ribeiras estranguladas
por habitações e entupidas
por entulho: vai ser assim
em 2027?
Uma tragédia natural é um braço do inferno: abate-se inapelavelmente sobre quem esteja no local errado na hora escolhida pelo diabo, e nenhuma força humana a pode suster. Foi o que aconteceu há dias na Madeira e que deixa a habitual mania da perseguição dos portugueses em dificuldade para encontrar culpados ou, se preferirmos, sem hipótese de lhes fazer sentir o peso do pecado e muito menos o da expiação. É rezar pelos mortos, tratar dos vivos, ajudar a reconstruir habitações e recompor vidas, chorar e continuar.
E, continuando, o que verdadeiramente importa é fazer com que a destruição de 20 de Fevereiro de 2010, que ampliou a de 1993, não se repita, lá para 2027, com efeitos ainda mais arrasadores. É que ler o que se escrevia há quase 17 anos no jornal Tribuna da Madeira, e que passo a citar, é um susto: “A 29 de Outubro de 1993, o Funchal despertou e foi colocado perante um cenário devastador. Chuvas torrenciais ocorridas durante a noite provocaram o deslizamento de terras e as ribeiras, estranguladas por habitações e entupidas por entulho, não conseguiram reter as águas em fúria dentro das suas margens. Os dias seguintes permitiram verificar a dimensão da tragédia. O caudal de água lamacenta arrastou para a morte oito pessoas e provocou prejuízos materiais de milhões de contos. Cerca de 100 habitações foram destruídas e largas centenas de funchalenses ficaram desalojados. As escolas tiveram que encerrar e 220 automóveis foram destruídos.”
Se corrigirmos o número de mortos, de viaturas e de habitações destroçadas, e de funchalenses desalojados para valores muito superiores, e se verificarmos que os prejuízos materiais ultrapassam desta vez os mil milhões de euros, a pergunta torna-se óbvia: poderíamos ter feito alguma coisa que levasse os demónios a descarregarem a sua ira noutro lado? E a resposta é só uma: poderíamos. Porque a primeira parte da notícia de 1993 não precisa de actualização para se publicar hoje. A bióloga Violante Saramago, em entrevista ao DN, pôs há dias o dedo nessa ferida: “Não se podem construir rotundas sobre ribeiras. Tudo isto tinha de rebentar. E não falamos apenas de uma, são três ribeiras que desaguam no Funchal. Alguém imagina cimentar o Tejo?”
Para se condenar o ordenamento do território na Madeira, que não é pior do que o caos que encontramos pelo País fora, há que ter em conta a exiguidade dos espaços, uma economia assente no turismo e os erros que vêm detrás, que foram condicionando as decisões e empurrando o Funchal para este destino. Políticos e engenheiros têm agora, com esta brutal lição, o dever de arrepiar caminho – contra todos os interesses instalados e sem contemplações.
Observador, crónica publicada na edição da “Sábado” de 25 Fevereiro 2010