Serás tu o jovem que
escreveu Capitães de Abril?
Enfim, apanhado. Lá se foi
o santo espírito da quadra…
Não tivesse eu uma vida inteira pela frente e já teria ido ao psicólogo. Melhor, ao psiquiatra, que isto não vai lá com doses leves. Mas como tempo não me falta, um dia pensarei nisso, embora possa fazer hoje – até para os meus pacientes leitores não se iludirem com as capacidades do autor – uma short list dos grandes traumas da minha existência, superados por uma cabeça dura que tanto me tem salvado do abismo como impedido de aproveitar oportunidades que me teriam proporcionado, quem sabe, momentos felizes.
Tudo começou aos 4 anos, em Canas de Senhorim, quando despejei um regador por cima de um miúdo da minha idade e ouvi depois a mãe dele, aos gritos, porque não tinha outra roupa para lhe vestir. Eis o meu primeiro choque: o ataque a uma criancinha, nada podia ser tão traumatizante.
Logo aos 5, nova desgraça. O final do ano lectivo no jardim-escola João de Deus, em Lisboa, com os meninos a juntarem umas letrinhas, ao vivo e a cores, na presença dos papás, orgulhosos de tanta inteligência acumulada nas lindas cabecinhas dos seus rebentos. Quando chegou a minha vez, bloqueei, a professora passou a palavra a outro e… foi uma vergonha para a família.
Este começo triunfal teve seguimentos comprometedores. Uns inconfessáveis, para não destruir o retrato do artista enquanto jovem, outros nem por isso, mas impossíveis de descrever agora, que mal comecei e já me aproximo do final desta crónica. Salto, por isso, para os dois últimos casos.
Por circunstâncias da vida – que sabe quem acompanhou o processo, não provoquei – estou casado há dez anos com uma mulher bastante mais nova. E tem sido engraçado ver, nas mais diversas situações, a reacção das pessoas, o seu preconceito, a sua estupefacção, por vezes até a falta de educação na persistência dos olhares, um sinal indisfarçável de reprovação. E acontece tanto nas caixas do supermercado como nas recepções dos hotéis. Em vez de me irritar com isso, chego a divertir-me, em especial se decido enfrentar a plateia austera e boquiaberta: “Deixa estar filha, que o pai depois vê isso contigo…”
O maior problema dos traumas é que não se anunciam. Olhem-me o último domingo, por exemplo. Estava eu em casa, a viver o santo espírito pascal e a ver um filme sobre Jesus Cristo, quando recebo, no telemóvel, uma mensagem sibilina do director da SÁBADO, Miguel Pinheiro: “Serás tu o jovem Alexandre Pais que escreveu a monumental obra em dois volumes Capitães de Abril, que tenho agora à minha frente?”
Enfim, apanhado. A cabeça é dura e não precisa de psicólogos, mas há sempre coisas para as quais nunca estaremos preparados. Foi há quatro dias e o estado de choque ainda é profundo.
Observador, crónica publicada na edição impressa da Sábado de 8 abril 2010