Alexandre Pais

Entrevista nos 60 anos de Record (Parte 2)

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RECORD – Como caracteriza a evolução do produto Record? Reconhece a existência de um período sensacionalista, outro da fase de profissionalização dos quadros e outro mais recente de procura de novos caminhos, nomeadamente de abertura a novas áreas de noticiabilidade, como sejam os temas generalistas?
ALEXANDRE PAIS – Tenho alguma dificuldade em analisar as anteriores fases do Record, que não acompanhei com atenção, já que o “meu” jornal era outro. Não conheci, portanto, o “período sensacionalista” e o da profissionalização dos quadros, que julgo até estar ainda em curso. Quanto ao da procura de novos caminhos, creio que tem sido esse o nosso trabalho fundamental nos últimos seis anos e meio.

RECORD – Como encarou as resistências internas e externas ao noticiário generalista, cujas portas o Record abriu na imprensa desportiva?
AP – Julguei-as naturais. As pessoas resistem sempre à novidade e a sacralização dos temas desportivos era uma questão cultural, havia que os preservar da contaminação do inimigo. As resistências externas sabemos no que deram. Como quem não quer a coisa, todos vão sendo vencidos pelo girar do Mundo, anos depois de terem desdenhado dos novos conceitos e tentando até com que pareça ser deles a ideia dessa abertura.

RECORD – A imprensa generalista, ao contrário, apostou no desporto…
AP – Foi menos convencional, mais inteligente e mais ágil, e aumentou o número de páginas de informação desportiva, sendo hoje a nossa maior concorrente.

RECORD – Como defende que sejam, no jornalismo dos nossos dias, as relações com clubes e dirigentes?AP- Discretas e institucionais. Se passarmos a fronteira do convencional, trocaremos algumas notícias de menor valia, que simpaticamente nos darão, pela tentativa do silêncio quando tivermos a informação pura e dura. E não é isso que o leitor espera de nós.

RECORD – Em quase sete anos na direção do Record quantas vezes já se encontrou com dirigentes ou com empresários?
AP – O acionista não me entregou a direção do jornal e a gestão de 8 milhões de euros/ano com os custos da redação para eu andar a fazer de relações-públicas. Almocei uma vez com o presidente Vieira e com o Rui Costa, e outra com o presidente Soares Franco, porque havia relações institucionais envenenadas e precisávamos de nos olhar de frente. Almocei com Scolari e com Carlos Queiroz, quando ambos iniciaram funções de selecionador nacional, porque houve interesse mútuo em que nos conhecêssemos. E almocei, há seis anos, com o então presidente da Federação de Andebol, Luís Santos, para pôr termo a um longo conflito que ele tinha com o Record. Não dá, como se vê, um almoço por ano. Quanto aos empresários, respeito-os mas não quero proximidade.

RECORD – Esqueceu-se do Belenenses…
AP – Não me esqueci, acontece que esses encontros não contam. Sou sócio há mais de 50 anos e esse é um ato regular, resultante da minha qualidade de associado. E tenho muitas saudades do Cabral Ferreira.

RECORD – E quanto ao FC Porto?
AP – Há uma antiga querela do jornal com o clube, que já existia quando cheguei e que assenta em questões mais profundas, que não consegui ultrapassar. Tenho essa mágoa, mas é preciso viver com isso.

RECORD – O que pode responder aos leitores que se insurgem contra o facto de raras vezes o Record dedicar primeiras páginas ao FC Porto?
AP – O prolongado corte de relações e as dificuldades levantadas ao nosso trabalho obrigaram-nos a reduzir o caudal informativo e o número de páginas com noticiário do FC Porto e, logo, a perder leitores. Ora se o jornal perdeu parte da sua influência junto dos portistas, e consequentemente também mercado, não faz sentido, e seria uma má opção comercial, apostar em manchetes sobre o FC Porto. Mas fazêmo-lo mais do que se julga a sul, pois o jornal opta algumas vezes por primeiras páginas diferentes na edição norte.

RECORD – E a política editorial deve basear-se sobretudo na lei do mercado? De que forma é que isso é conciliável com o jornalismo?
AP – Os tempos do “politicamente correto” acabaram. Quando os cheques que pagavam os salários vinham de uma entidade mais ou menos abstrata que ia buscar o dinheiro ninguém queria saber onde, as decisões editoriais tinham outra lógica. Era o tempo em que os jornais recusavam publicidade, metiam-se até cunhas aos chefes de redação para se conseguir publicar um anunciozinho. Hoje, a independência dos jornalistas e a qualidade da informação que produzem depende essencialmente da saúde financeira da sua empresa. Um acionista que está satisfeito com os resultados não se mete nos conteúdos, não dá palpites, não sugere colunistas e não valoriza os fracassos, que são inevitáveis. Mas se for buscar dinheiro a outros negócios para pagar o jornal, não parará de cobrar o favor de garantir os salários todos os meses.

RECORD – A administração do Record nunca se meteu nos conteúdos? Alguma vez se sentiu pressionado?AP – Tem feito pontualmente críticas e também elogios. E tem dado algumas ideias. O que agradeço porque é com as críticas que corrigimos os erros, é com os elogios que nos motivamos mais e é com as ideias que andamos para a frente. Aliás, uma boa ideia interessa pouco de quem vem e a nossa disponibilidade para a ouvir tem de ser total. Quanto às pressões, nestes anos todos, resumo-as a uma palavra: zero.

RECORD – A regionalização das edições, a exemplo do que acontece em Espanha, poderia também ser uma solução em Portugal?
AP – Somos um país pequeno, o nosso mercado não pagaria tantas chapas, tantos arranques de máquina e tantos jornais perdidos em afinações. Bem como a pulverização da distribuição. Não creio que seja negócio.

RECORD – É comum, na opinião pública, os três jornais desportivos serem identificados com os três maiores clubes. É justa a relação Record/Sporting?
AP- Só perdemos com essa associação, que temos procurado combater em termos práticos. E hoje notam-se resultados junto dos benfiquistas, que estão a compreender que a isenção do Record e a sua equidistância em relação aos grandes é total. Basta referir que, nos diretores, o Sporting ganha por 2-1, e nos editores-chefes vence o Benfica, por 4-2, pelo que não existe “clubite hegemónica” aqui dentro. Nem podia haver porque somos profissionais e com a profissão não se brinca.

RECORD – A Seleção Nacional de futebol é fundamental para o sucesso da imprensa desportiva, sabendo-se que em Portugal se vive o fenómeno da clubite?
AP – A imprensa desportiva atravessa um período em que tudo é fundamental. Infelizmente, a Seleção não traz sucesso comercial. Mas se trouxer sucesso desportivo já é fantástico porque um jornal vive sempre mais dos êxitos do que dos fracassos.

RECORD – Quais as principais diferenças que consegue identificar entre o jornalismo desportivo atual e o que conheceu há mais de duas décadas?
AP – Comecei no jornalismo desportivo há quatro décadas, não há duas… E as diferenças são abissais para o que se fazia há 40, ou mesmo há 20 anos. A televisão era rudimentar e a rádio, em termos desportivos, vivia dos relatos. Não se sonhava com a Internet, os telefones tinham muitos problemas e as fontes da notícia estavam sempre longe. O Vítor Santos, que chefiava a que foi talvez a mais extraordinária redação de toda a imprensa portuguesa, era para mim a pessoa mais importante do país. Mas tive a sorte de trabalhar com o José Neves de Sousa, um profissional fabuloso que marcou toda a minha carreira. Ele ensinou-me, aos 20 e tal anos, a conhecer os truques do meio desportivo, a cumprir horários, a assumir responsabilidades, a cortar textos, a fechar páginas nos gráficos, a enganar a Censura e, talvez o mais importante, o verdadeiro segredo, a trabalhar sempre um pouco mais do que os outros.

RECORD – Qual o elemento mais perturbador do jornalismo desportivo que hoje se faz?
AP – Sem dúvida a impreparação de alguns seniores, que alguém transformou em editores, e a péssima noção que trazem na cabeça os recém-chegados à profissão do que é hoje o trabalho numa redação.

A denúncia das restrições e as notícias

RECORD – Perante as restrições dos clubes (proibições de entrar nos treinos, blackouts seletivos, etc…), não deveriam os jornais e os jornalistas ter um papel mais denunciador?
AP – Denunciador para quê? Alguém faz alguma coisa? Não vale a pena. A nossa missão é dar notícias e, quando os clubes nos bloqueiam, a solução nem é a denúncia nem é o pedido de batatinhas, mas sim procurar outras fontes que nos assegurem a informação. O leitor não quer saber os porquês, exige notícias e rigor, ponto.

Furiosos dramáticos no fenómeno off-side

RECORD- O “Off-Side” foi um projeto que nasceu antes do tempo?
AP – Nasceu no tempo certo e no tempo certo morreu, os jornais abrem e fecham. Mas foi um fenómeno que marcou uma época, abriu pistas e testou muitos dos conceitos inovadores dos nossos dias. Eu fui apenas uma peça dessa máquina, o importante é verificar, 25 anos depois, onde param as outras…

RECORD- E estão onde?
AP – O António Magalhães, que iniciou lá a profissão, é diretor-adjunto de Record. Outro que também começou no “Off-Side”, o José Paulo Canelas, é diretor da “TV 7 Dias”, e a Teresa Pais, que recebia as fichas dos jogos, aos 16 anos, dirige hoje as revistas “TV Mais” e a “Telenovelas”. Mas há mais: o Mário Fernando é o responsável pelo Desporto da TSF, estação até há pouco dirigida pelo Carlos Andrade, outro elemento da equipa do “Off-Side”, o João Bonzinho foi diretor do “Sexta” e chefe de redação de “A Bola”, o Paulo Martins é chefe de redação adjunto do “Jornal de Notícias”, o Ricardo Tavares é editor do “Correio da Manhã” e foi chefe de redação do Record, o Manuel Falcão é diretor-geral da Nova Expressão e dirigiu a RTP2, o Joaquim Raposo é presidente da Câmara da Amadora e a Teresa Viana é executiva da Initiative. E sem esquecer o Ilídio Trindade e o Rui Tovar, dois jornalistas extraordinários, tal como os repórteres-fotográficos Rui Raimundo e Marques Valentim, podemos voltar ao Record e referir ainda o António Varela, editor-chefe, que foi correspondente do “Off-Side”. Para um jornal que durou menos de três anos e que tinha uma equipa pequena, é uma “ficha técnica” impressionante.

RECORD- Que conselho daria, há 25 anos, a um jovem jornalista? E hoje, o conselho é diferente?
AP – Só há dois meios para ter sucesso: o trabalho e o conhecimento. Mas como a concorrência é feroz, em cima do trabalho há que pôr a determinação absoluta e o espírito de sacrifício por vezes levado até aos limites do racional. Recordo-me, no “Off-Side”, de chegar a trabalhar, com o Magalhães, o Bonzinho e o Mário Fernando, das 10 da manhã de quarta-feira, em que havia jornada europeia, até às 12 horas do dia seguinte, quando o jornal, que saía à sexta-feira, entrava na máquina. 26 horas non-stop! Éramos mesmo furiosos dramáticos. Hoje, quem quiser fazer carreira não precisa de ir tão longe, mas tem de puxar a carroça na mesma. Se ficar a olhar para a beleza do diploma é trucidado.

As fontes organizadas não controlam tudo

RECORD- Estarão os jornalistas reféns das fontes organizadas dos clubes?
AP – Felizmente, vivemos em Portugal e tudo se vai conseguindo saber. No Record, como a comunicação do que se passa no jornal é permanente e não temos uma gestão de “Borda d´Água”, com o devido respeito, o que aqui se passa sabe-se cinco minutos depois lá fora. Pelos mesmos motivos, os clubes sentirão muita dificuldade em concertar as suas fontes, haverá sempre alguém que arranjará maneira de passar a informação. É da natureza humana. Se até o segredo de justiça é sistemática e impunemente desrespeitado…

RECORD- Como lida o Record com as “zangas” recorrentes dos clubes mais importantes?
AP – Com a noção da responsabilidade. Nunca se pode entrar nesse jogo. Estão satisfeitos connosco, ótimo. Se não estão, fazemos o trabalho na mesma, com a certeza que depois de maus tempos outros virão. O que não se pode é sobrevalorizar os conflitos.

Autores: ARTUR AGOSTINHO, ANTÓNIO MAGALHÃES, ANTÓNIO VARELA, JORGE BARBOSA E SOFIA LOBATO
Data: Quinta-Feira, 26 Novembro de 2009

 Na entrega do Prémio “Off-Side” a mestre Vítor Santos, em 1984

Por Alexandre Pais
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