A comida de cão está longe de ser o pior que se associa à imagem do melhor amigo do homem. Vejamos, por exemplo, o mundo-cão. Houve tempos em que pensei que o pesadelo terreno se resumia aos filmes com esse título, um original e diversas sequelas que nos exibiam um sem número de aberrações. Em Portugal, o Jornal do Incrível atingia nessa altura tiragens recorde e a janela ampla sobre o Planeta que viria a ser a televisão mostrava ainda horizontes demasiado limitados. Só bastante mais tarde me apercebi verdadeiramente de como são terríveis as injustiças e as desigualdades e, em especial, como são dolorosos os longos períodos em que Deus dorme e permite que os homens recorram ao grande livro da ignomínia, para semearem, sem que sejam punidos por isso, a destruição, o sofrimento e a morte.
Pequeno como sou, a costela egocêntica arrasta-me a palavra para a vida de cão que é a minha. Porque, ao invés do Mundo, cuja desgraçada rotação não podemos contrariar, eu teria conseguido viver bem melhor se… São muitos ses, é certo, desde os erros sistemáticos na avaliação das pessoas – particularmente daquelas em cujas mãos entreguei boa parte do meu destino – até às orelhas moucas aos conselhos de quem me quis bem, passando por uma determinação doentia que me fez descobrir cedo que só me restava uma hipótese: trabalhar mais do que me era pedido. E essa foi a porta para a prisão em que ainda me encontro hoje, uma cela estreita que não me deixa percorrer as cidades, ver os filmes, ler os livros, reactivar as relações, revisitar os lugares de infância, desfrutar da companhia da família, dispor, enfim, de tempo para gastar comigo – que nem sei muito bem quem sou. Há sempre mais uma hora, mais uma obrigação, mais um esforço para esticar a jornada.
Mas devo esclarecer que esta vida de cão não pinga sangue, nem me transforma em vítima. Tenho consciência social que baste para reconhecer que pago apenas um preço pelo bem estar que rodeia o meu círculo mais restrito, um preço que não tem comparação com o que é exigido a tanta gente que luta e se esforça sem tirar daí os esperados dividendos.
Mundo-cão, vida de cão… e que posso dizer sobre comida de cão? Bem, lá vai. No último fim-de-semana, estive em casa de amigos, em Mértola, e no sábado de manhã verificou-se que a paparoca da cadelinha da família havia ficado em Lisboa. Valeu o minimercado da rua, onde, por sorte, foi possível adquirir as últimas latas de uma qualquer conserva canina, que a boa da Runfas tragou num ai. Duas horas depois, os sinais da qualidade do produto espalhavam-se pela sala… É verdade: de cão, nem vida, nem comida.
Observador, crónica publicada na edição impressa da Sábado de 17 fevereiro 2011 (tema de Sociedade da semana: comida de cão)