Não perdoo a Maria Filomena Mónica a polida recusa ao convite que lhe fiz, ainda não há muitos anos, para escrever no Record. A desfeita não foi obviamente pessoal, mas o jornal perdeu, e isso é que me custou, um olhar diferente sobre o desporto, as suas grandezas, as suas misérias. A imprensa especializada que se dedica muito ao futebol, pouco às outras modalidades e quase nada às pessoas que somos e ao mundo que nos rodeia, focou-se de maneira excessiva no círculo fechado dos seus eternos problemazinhos e paga hoje o preço dessa estreiteza de vistas. Digamos que é o destino.
Só senti vontade de fazer as pazes com a filósofa quando li o seu ensaio, “A Morte”, sentado num avião que demorou mais tempo a partir do que a chegar a Barcelona. A abordagem à doença de Alzheimer, que destruiu, progressiva e implacavelmente, os últimos 11 anos da vida de sua mãe, descritos com forte realismo nas páginas iniciais do livro, e a reflexão seguinte sobre a morte, são de leitura obrigatória por quem se preocupe com os derradeiros dias da existência.
Eu já conhecia quase todos os sintomas e devastadoras consequências do mal de Alzheimer, pois há muito me interesso pelo tema e pude mesmo acompanhar a ínfima parte do sofrimento de uma das minhas filhas, que viu a condição da sua mãe degradar-se, dia após dia, como retaliação de um deus maligno a um pecado que ninguém cometeu. Mas não é só esse o padecimento que me apavora. Há pouco mais de dois anos vi desaparecer o meu pai, atingido por simples demência senil, de igual forma dolorosa, para o próprio e para a família, e não menos injusta e ultrajante.
Ele esteve relativamente bem até aos 90 anos, altura em que, não tendo sido flagelada por qualquer doença que não perdoa, a máquina humana começa a procurar por onde falhar. Como a insuficiência cardíaca era normal para a idade, as forças do mal optaram por lhe intensificar as faltas de memória e as pequenas paranóias. A partir dos 92 anos, iniciámos uma via sacra por especialistas que se limitavam a propor novos e inúteis exames. Foi o período em que ele ainda se conseguia defender, simulando reconhecer quem já não reconhecia, entender o que já não entendia. E tentar ser fiel ao treino que lhe manteve a lucidez até tão tarde: o das palavras cruzadas. Um exercício que terminou quando a minha mãe descobriu que ele se limitava a fazer riscos no lugar das letras.
Daí até aos 94 anos e dois meses, idade com que nos deixou, foi um verdadeiro calvário ver o meu pai perder todas as faculdades cognitivas. Não tenho o talento de Maria Filomena Mónica, o que é também uma boa desculpa para manter privadas as memórias tristes desse penoso adeus.
Observador, crónica publicada na edição impressa da Sábado de 15 dezembro 2011