Pronto, batemos no fundo. Ou talvez não, pode ser que tenhamos apenas encalhado num pequeno socalco do declive e o abismo continue bem mais para baixo. É, pelo menos, a desconfiança que nasce quando se vê o nariz torcido de Medina Carreira às novas medidas, se lê a análise de Nicolau Santos, publicada na última edição do Expresso e que nos promete uma crise até 2020, ou se ouve Teixeira dos Santos quando diz que a redução dos salários do Estado “é definitiva”, uma estranha maneira de minar a nossa já frágil capacidade de resistência à desgraça, em especial vinda de quem durante anos se recusou a admitir a chegada do monstro que nos cai agora em cima.
Não, não temos ainda a verdadeira noção da ofensiva ao bem estar – nalguns casos, pois noutros é mesmo a sobrevivência que está em causa – que se esconde detrás do arraial que desce a avenida. É que desta feita o discurso não assenta no pedido de sacrifícios em troca da miragem de passarmos a viver numa terra onde corra o leite e o mel – como fizeram Sócrates e Manuela Ferreira Leite. Hoje, já ninguém adoça a pílula, um bom murro resolve a questão: vais pagar muito e por muitos anos.
Não tenho, infelizmente, dúvidas de que não haverá brandos costumes que nos afastem desta vez da agitação de rua por que passaram a Grécia e a França – e Paris está de novo a arder – e que outros países sentirão em breve. Ignoro se o terramoto social que aí vem será uma inevitabilidade da crise financeira global, mas sei como se afundou Portugal, um país que começou a empobrecer no dia em que montou um sistema político baseado no clientelismo, no dia em que não utilizou adequadamente os fundos europeus e não fez a reforma administrativa, no dia em que não puniu com severidade a corrupção, no dia em que permitiu que as autarquias se endividassem para encher os quadros com malta dos partidos, no dia em que multiplicou empresas e institutos públicos para dar empregos – bem remunerados e repletos de mordomias – a certa gentinha incapaz de construir uma carreira profissional na vida privada, no dia em que não teve competência para acabar com os governos civis e reduzir o número de deputados, de assessores de ministros e de secretários, e de lhes retirar carros e almoços, passeatas e telefones, no dia em que, em suma, não entendeu que o Estado, como as famílias, não poderia – logo que terminasse a pescadinha dos empréstimos para pagar empréstimos – continuar a viver de recursos que não gera.
Aliás, foi a conclusão a que essa fina rapaziada chegou agora: se não geramos riqueza, vamos roubá-la. E como urricos são poucos, os pobres serão também assaltados. Veremos é se eles se conformam e até quando.
Observador, crónica publicada na edição impressa da Sábado de 21 outubro 2010