Numa das minhas
primeiras vidas, privei com uma pessoa cuja maior preocupação era aquilo que os
outros tinham, os presentes ou as heranças que recebiam, os carros que trocavam,
as casas ou os móveis que adquiriam, os anéis ou as roupas que usavam. Ela
consumia-se em particular por haver sempre alguém com quem não podia competir em
termos materiais. Mas em simultâneo não gostava de sacrifícios, não queria
trabalhar melhor, esforçar-se mais para, sendo-lhe assim tão importante o
ter, lograr
alcançá-lo.
Desde que me
conheço, o meu raciocínio desenvolveu-se no sentido contrário. O de não querer
saber do estilo de vida, da conta bancária e dos bens alheios, e de seguir o
exemplo dos meus pais: preocupar-me, sim, com o que podia ou devia fazer para
atingir o mais simples dos objectivos, o de viver com dignidade. Durante muito
tempo pensei, confesso, que esse seria, um dia, o desígnio maior do homem,
conquistado que estivesse o direito à igualdade de oportunidades: obter, pelo
trabalho, a segurança e o bem estar. E se me enganei, confirma-se agora que não
estou só, pois até Aníbal Cavaco Silva vem a terreiro apresentar as suas queixas
e revelar que se encontra investido de um novo cargo: o de supremo aldrabado da
nação.
Ao longo de quase
meio século, o actual PR cumpriu as regras que lhe garantiriam uma aposentadoria
de acordo com o elevado nível profissional que alcançou e com os cargos – não
menos elevados – que desempenhou. Não contava, embora tenha sido, no capítulo da
engorda suicida do Estado, primus inter
pares, que chegada a sua altura a inveja social atingisse todo este
fulgor.
Cavaco acumula – que crime! – 10 mil euros mensais de duas reformas que
justificou com os seus descontos, mesmo que, na verdade, não veja hoje cair na
sua conta mais de 6 mil e tal euros líquidos. Mas ainda que recebesse 3 mil, os
que têm metade achariam muito, e se fossem apenas mil, os que auferem a pensão
social considerariam isso um escândalo. Foi o estado a que chegámos: somos
diferentes no estudo, no empenho, nos sacrifícios, nos anos de trabalho, nas
poupanças, nos consumos e nos impostos, e só exigimos convergência e
solidariedade na hora de meter ao bolso – Marx vive em
nós.
Portugal deve ser o
país da UE que pior pagaria, se pagasse, ao seu Presidente: 6500 euros/mês, o
salário de um jornalista no topo da carreira. Mas é, seguramente, o único que
não paga de facto, e que vê assim o seu mais alto magistrado lamuriar-se em
público de que o dinheiro não chega para as suas despesas. É uma vergonha? Isso
não. Deitámo-la fora há muito, com a água do banho desta demagogia miserável que
nos comanda e nos destrói.
Observador, publicado na edição impressa da Sábado de 26 janeiro 2012