A entrevista que a SÁBADO publica nesta edição com o psicoterapeuta espanhol Enrique Garcés confirma que os êxitos começam sempre na cabeça dos protagonistas. Costumo lembrar Carlos Lopes, que foi campeão e recordista do Mundo, e campeão olímpico, depois de treinar muito à portuguesa, com mais coração do que ciência, a correr pelo meio dos carros nas ruas de Lisboa, – onde chegou, aliás, a ser atropelado. Porque quando as pernas cansadas, a respiração ofegante, o coração acelerado e as dores generalizadas lhe exigiam que parasse, era a sua vontade que resistia e mandava continuar.
Esse exemplo do desporto, actividade que nos apresenta muitos outros casos de sucesso nascidos de uma determinação inquebrantável, pode facilmente encontrar paralelo noutras áreas, dos negócios às artes. Será difícil dar, sim, com um vencedor que tenha o sótão cheio de macaquinhos, a não ser que se trate de um epifenómeno, simples convergência de acaso e fortuna.
Mas não há máquinas humanas perfeitas, e descobrir-lhes os pontos fracos e trabalhar na sua superação ou na forma de os compensar é a tarefa dos gestores dos projectos. E isso estabelecerá a diferença entre os líderes e os que aceitam apenas um papel em circunstâncias fortuitas.
Garcés sublinha o êxito de José Mourinho e da sua “representação” em campo, Cristiano Ronaldo. O treinador, diz, “é uma pessoa afável, tranquila e comunicativa”, que se transforma quando as coisas correm mal à sua equipa, concentrando todas as atenções em si e tornando o ar respirável aos seus jogadores. Essa postura tem naturalmente um retorno, que é o da motivação plena no confronto seguinte, com as cabeças a imporem às pernas desgastadas e aos peitos arfantes a continuação do esforço até à exaustão plena. É o célebre mote da Avis, we try harder, a provocar o sacrifício suplementar que permite ao homem comum entrar na esfera dos deuses.
Cristiano é ainda um exemplo mais elucidativo, pois a sua origem é bem mais modesta do que a de Mourinho, a formação académica incipiente e a ausência de experiência e maturidade quase total. Mas o futebolista só teve de trabalhar o corpo, já que nasceu com dois dons extraordinários. O primeiro é o da habilidade para o jogo, que vontade alguma permite alcançar. O segundo é o da força mental blindada à desgraça, que é também antídoto para o mais letal dos venenos: o da submissão aos insultos e ao que os outros acham.
Sendo isto uma evidência, não entendo como pode o Portugal do futebol ter evoluído e o país estar nas mãos, há tantos anos, de gente cujo poder não resulta da mente, da qualificação, do sucesso. Fazemos gala em ser burros.
Observador, crónica publicada na edição impressa da Sábado de 26 abril 2012