A burocracia ainda não mortalmente atingida pelos simplexes desta vida é talvez a maior responsável pelo nosso atraso. E não se encontra para isso outra desculpa que não seja a velha negligência nacional com as questões do tempo, esse bem cada vez mais precioso e cada vez mais desperdiçado.
Tenho de novo de recuar na memória para procurar o primeiro sinal de desperdício que registei. Lembro-me de brincar, na década de 50, no posto n.º 4 das Caixas de Previdência – era assim que se designavam os actuais centros de saúde – onde os meus pais trabalhavam, e que ficava na Rua de Buenos Aires, em Lisboa, no 1.º andar do prédio de uma pastelaria que lá continua, já snack-bar e sem o serviço personalizado dos bons velhos tempos. E bons apenas porque eu era criança, deixem-me acrescentar.
Havia duas salas de espera, quase sempre repletas de beneficiários – os utentes vieram depois – que esperavam tempos infindos para serem atendidos. As senhoras faziam renda ou tricô e davam à língua, enquanto os cavalheiros fumavam e liam os jornais da bola, e as crianças brincavam no chão varrido de madrugada. De vez em quando, uma enfermeira chamava, nervosa, o impaciente seguinte, e recordo até uma vez em que, não tendo obtido resposta rápida, a funcionária repetiu: “Fulano de tal! Onde é que está essa besta?”
Essa relação de tensão permanente, que se manifestava logo no acto da inscrição e que chegava a conflitos com murros no balcão e à intervenção policial, complicou-se sobremaneira mais tarde, nos anos 60, com a chegada dos transistores, os primeiros rádios portáteis, e a audição dos folhetins, os precursores das telenovelas, o que levava a acesas discussões se alguém tentasse persuadir a proprietária do aparelho a baixar o volume do som.
Deixando a pré-História portuguesa, época em que era igualmente penoso o atendimento nos notários ou nas conservatórias, nas estações dos correios ou nas repartições de finanças, no registo civil, para tratar do bilhete de identidade, ou no governo civil, para obter o passaporte, nas secretarias de escolas e universidades, para fazer as matrículas, ou nos centros de recrutamento, para os exames médicos do serviço militar, nos apertados guichês, em que se adquiriam bilhetes para o futebol, para o hóquei em patins ou para as touradas, ou nas intermináveis esperas pelos comboios da CP, eternamente atrasados, o que se nos oferece agora para bater uma soneca como fez a repórter da SÁBADO? Bem, as lojas do cidadão simplificaram o sistema, a procura já não é um drama, e o tédio transformou a vontade de dormir num lenitivo nacional. O mais penoso hoje não é quando se adormece, é quando se acorda.
Observador, crónica publicada na edição impressa da Sábado de 16 junho 2011. Tema de Sociedade da semana: dormir nas salas e espera