Alexandre Pais

Crónicas da Sábado: aventura no Curry Cabral

C

Na semana passada, dei conta da minha experiência horizontal numa rua de Lisboa. Pois eis-me já na ambulância do INEM, tinoni, tinoni, a caminho do serviço de urgência do Hospital Curry Cabral. O alijar da carga é um acto rápido, a inquirição por uma menina da triagem mais rápida ainda. Escrevem-me o nome numa tabuleta presa à maca e encostam-me a uma parede. Aqui, devo ao leitor uma primeira explicação: tudo se passa num corredor em T, que não terá mais de três metros de largura e no qual as personagens evoluem como numa série televisiva. Personagens em geral simpáticas, quase todas jovens e visivelmente empenhadas no seu papel. Não é culpa delas o terceiro-mundismo das instalações – à beira do encerramento, aliás – nem as deficiências de organização do trabalho que a falta de condições agrava mas não desculpa.

Uma médica inicia um segundo inquérito, tenta conhecer antecedentes clínicos e doenças familiares. Diz-me que vou fazer um electrocardiograma e tomar um medicamento para a indisposição gastro, na altura a minha única queixa. Levam-me a seguir a maca para o outro corredor, mais estreito, onde uma enfermeira abana um doente que não quer acordar: “Olhe que ou vai urinar ou tenho de o algaliar!” O homem não reage, parece em coma alcoólico.

Um auxiliar (?) arrasta-me para uma sala minúscula e põe-se a picar-me o braço, à procura de uma veia que outros sempre encontram e ele não. Acabo com uma agulha espetada nas costas da mão, agarrada por um adesivo. E quando surge um colega do fura-braços, a conversa aquece: “Eh pá, tou farto das gajas de Lisboa, f….! Gajas boas é no (cita a cidade), c….!” Volto para o corredor e salto da maca para uma cadeira, vaga por milagre. Decorreu mais de uma hora e os pacientes são em maior número. É uma visão dura, a de muitos idosos, alguns já de cor cadavérica, que encontram nas urgências um pequeno lenitivo para os seus males, talvez uma voz amiga ou apenas um pouco de comida.

Mas nem um lanchinho se ingere sem drama. Outro auxiliar queixa-se de que só tem garfos de plástico para dar os iogurtes. As vozes alteram-se e aparece, enfim, alguém com pretensões de mando: “Ó sr. fulano, a beltrana (diz os nomes) não avisou, antes de sair, que não havia colheres?” No Curry Cabral, como em tantas empresas, os chefes vão de carrinho: “Sim, ela disse-me qualquer coisa que não sei quê as colheres… mas eu é que não quero cá responsabilidades!”

Após duas horas, faço o electrocardiograma. Passa mais meia hora, nada de medicamento, desisto. Já não estou indisposto. Procuro a saída pelo corredor sobrelotado. Há um odor pesado, ninguém repara em mim. Tomo um táxi e arranco a agulha em casa. O sangue esguicha, mas a morte perdeu desta vez.

Observador, crónica publicada na edição impressa da Sábado de 29 setembro 2011

Por Alexandre Pais
Alexandre Pais

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