Acabou da maneira que se previa a longa carreira de terror de Muammar Kadhafi. Os democratas de todo o mundo suspiraram de alívio por ver cair mais um tirano, mas não alinharam na triste celebração da morte que se seguiu. E muito menos terão aprovado – com algumas excepções, bem feias – que um selvagem fosse linchado por outros selvagens, no tenebroso cumprimento da lei de talião que reduz a justiça ao olho por olho, dente por dente.
Escrevi aqui há meses que uma longa guerra civil esperaria a Líbia e continuo a pensar que esse será o seu destino, passada esta fase de euforia e quando os poderes tribais, e o desaparecimento do inimigo que concentrava todas as raivas, trouxerem ao de cima ódios ancestrais e divergências insanáveis. Até porque quatro décadas de arbitrariedade deixaram sementes de violência que germinarão em sucessivas gerações de gente impreparada para a liberdade e que não verá cumpridas as expectativas criadas com a queda da tirania.
Este fim de linha para Kadhafi provocou-me duas surpresas. Uma foi a timidez das reservas quanto à liquidação sumária do ditador, já prisioneiro e indefeso como um insecto. E o modo como certos líderes se congratularam não só com a queda de um regime que de facto deixara de existir meses antes, mas também com a execução do déspota que não há muito tempo saudavam com sorrisos, cumprimentavam com deferência e abraçavam com cinismo. Paulo Portas recusou, antes e depois, esse papel, honra lhe seja feita.
A segunda surpresa veio do comportamento do ex-líder líbio, que não fugiu, como prometeu, e se deixou aprisionar – com a sua famosa pistola dourada – contra todas as regras dos implacáveis que escolhem não perdoar e sabem que, chegada a sua hora, não serão perdoados. Convenci-me de que Kadhafi morreria a combater ou se suicidaria, ou que algum dos seus próximos teria ordens para o abater no momento limite. Tal não aconteceu e é fácil imaginar como a sua morte poderia ter sido ainda mais horrorosa.
Lamento que o mundo civilizado não tenha dado a um criminoso a hipótese que ele nunca deu aos seus inimigos: a de ser julgado. É pena que não o possamos ver reduzido a nada perante a justiça e que o seu martírio passe ao lado da exposição de todas as atrocidades que cometeu e sua consequente expiação. E que, ao contrário, o seu fim constitua, para os jovens e para o futuro, um exemplo de que é com a barbárie que se combate a barbárie. Quem sabe se possa mesmo, um dia, vir a trucidar na rua um líder eleito que se torne impopular. A comparação é exagerada? Talvez. Mas a fronteira que separa situações tão diferentes, espalhado que esteja o caos, é demasiado ténue.
Observador, crónica publicada na edição impressa da Sábado de 27 outubro 2011