Alexandre Pais

Crónicas da Sábado: a contradição do WikiLeaks

C

Não me perguntem porquê, mas não consigo sentir a mínima simpatia por Julian Assange, o australiano que manda no WikiLeaks. Provavelmente porque, ao contrário de uma suposta maioria de companheiros de profissão, corro por fora da corporação, o que desde logo significa que não me identifico com a casta a que muitos julgam pertencer. E vejo que Assange transpira pretensão – no mínimo, a de ser considerado um dos bons, um jornalista bacteriologicamente puro. Não aprecio gente dessa.

Embora não alinhe com qualquer dos estéreis grupos de café em que a classe saloiamente se divide, pelo menos em Portugal, sou acérrimo defensor da livre circulação da informação, incluindo o reconhecimento do direito dos editores à interpretação do que é ou não é, não do interesse público, mas do interesse do público a que se pretendem dirigir. Porque se respeitássemos o conceito tout court dos deontólogos encartados, então ficaríamos presos num colete de forças do qual só sairíamos para corresponder a exigências pontuais dos poderes – político, económico, religioso ou até do próprio autor da notícia.

O problema é que vivemos num planeta perigoso e não podemos abdicar dos níveis de segurança que nos protejam dos fundamentalismos e do terrorismo. É bonito que homens sem coleira e sem mordaça defendam todas as revelações, independentemente das consequências, e fica bem a um site sueco fornecer informação, que devia ser reservada, sem crivos aos inimigos da liberdade e da democracia, àqueles que, se pudessem, depressa acabariam com os irresponsáveis arautos dessas ingenuidades.

Além do mais, estamos perante uma utopia que sacrifica vidas. Ainda no último fim-de-semana mais seis soldados da NATO morreram no Afeganistão, onde defendiam – ou, pelo menos, julgavam defender – o direito do mundo democrático a proteger os seus filhos. Como se sentirão as famílias dos imolados ao assistir, por um lado, ao seu martírio e, por outro, à divulgação de dados que favorecem objectivamente os desígnios dos seus algozes?

Esta contradição que o WikiLeaks agora trouxe à ribalta é o espelho da pobre sociedade em que nos transformámos. Com a nossa costela de direita a considerar justa a guerra que tenta travar a ameaça aos que nos são queridos e com a nossa costela de esquerda a abater todas as barreiras de protecção aos que mandamos combater por nós – um verdadeiro suicídio colectivo.

Nada do que atrás deixo escrito anula o gozo de ver na praça pública, graças à incompetência das poderosas secretas norte-americanas, mais uns tantos podrezinhos dos palermas que temos de gramar por cá.

Observador, crónica publicada na edição impressa da Sábado de 16 dezembro 2010

Por Alexandre Pais
Alexandre Pais

Arquivo

Twitter

Etiquetas