Os problemas das empresas, com mais ou menos crise, começam quase sempre em deficiências na organização e na falta de regras. Como estou convencido de que assim é, tornei-me um bocado fundamentalista e reconheço ter cometido exageros na parte que me toca. É que nas redações a natureza dos profissionais revela tendências de algum descontrolo, tanto nas horas de entrada ou no palavreado, como na coordenação das férias ou na contabilidade das folgas atrasadas – quando cheguei ao Record, em 2003, havia diversos jornalistas com mais de 100 (cem!) supostamente acumuladas. Não é para admirar esses oásis de anarquia porque se quiséssemos ser empregados de escritório, e entrar às 9 e sair às 6, teríamos escolhido outra carreira.
Mesmo sem já nada ter a ver com isso, achei muito bem a recente norma da Cofina, tão glosada em meios de comunicação cujas vendas, em 2013, ficaram entre os 3 e os 15 mil exemplares/dia em banca, de proceder, aliás de forma ocasional e aleatória, ao controlo da alcoolemia dos seus trabalhadores, jornalistas ou não. Mas se ainda lá estivesse, alertaria os Recursos Humanos – como fiz quanto à necessidade de se ser flexível na aplicação da lei nos mapas de férias porque uma redação é diferente de uma fábrica de salsichas – para ter em conta o espírito culturalmente boémio de uma classe profissional que precisa de certa liberdade para dar mais de si. Explico.
Há 20 anos, cheguei a um semanário em mudança de ciclo e, como abstémio empedernido que sou, tive de começar por limpar as prateleiras que se encontravam atrás de mim e que abarrotavam de garrafas vazias e de copos que foram ficando. O jornal fechava as páginas pela madrugada fora e havia uma malta que se aguentava melhor… bebendo. Não conduziam camiões, não estavam na via pública, não importunavam quem quer que fosse, eram apenas jornalistas que trabalhavam ali como se estivessem em casa.
Vivi mais de quatro décadas em redações, conheci pessoas da maior qualidade, desde o Fernando Assis Pacheco ou o Neves de Sousa, na minha idade da pedra jornalística, até ao Rui Dias ou ao Norberto Santos, na hora em que o sol caiu no horizonte. Sei por isso do que falo e já não tenho idade para escrever nada mais do que me apetece e menos do que verdade. E recuando esses 20 anos reconheço – e faço-o simultaneamente com o prazer do sentido de justiça e com a nostalgia da certeza que a água corre sempre para a foz – que nunca trabalhei com um grupo de jornalistas tão seguros, tão profissionais e tão talentosos. Quem eram, quem são? Bem, isso não digo porque uns bebiam e outros não. Tiro é o chapéu a todos – in vino veritas.
Observador, Sábado, 5MAR14
A verdade no vinho
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