Lisboa parecia, em Junho de 1968, uma capital da cultura. A 5, estreara-se no Teatro da Trindade o Rigoletto, de Verdi, pela Companhia Portuguesa de Ópera, com encenação de Tomás Alcaide, e no dia 7 o Royal Ballet dançava no São Carlos. Mas na noite de 6, no Coliseu dos Recreios, o Festival Gulbenkian de Música proporcionava o momento alto da semana, com uma adaptação de Romeu e Julieta, de Shakespeare, interpretada pelo Ballet du XXème Siécle, com música de Berlioz e coreografia de Maurice Béjart.
No final, demorados aplausos chamaram o coreógrafo ao palco e Béjart quis homenagear Robert Kennedy, candidato às presidenciais dos Estados Unidos e morto na manhã desse dia, na mesa de operações, depois de um atentado ocorrido na véspera. Béjart declarou-se “contra todas as formas de violência e ditadura” e pediu um minuto de silêncio, o que foi cumprido com a maior parte dos espectadores de pé.
Seguiu-se uma ceia com os artistas na residência do embaixador da Bélgica e, com Maurice Béjart já no Hotel Borges, deu-se a intervenção da PIDE, que depositou o coreógrafo, a meio da madrugada, na fronteira espanhola. Os espectáculos seguintes foram cancelados, a notícia percorreu a Europa e isolou ainda mais o regime, mas em Portugal a Comissão de Censura impediu que se divulgasse o escândalo e nem a influência de Azeredo Perdigão, presidente da Gulbenkian, demoveu Salazar da absurda demonstração de força. Após o 25 de Abril, Béjart e a sua companhia voltaram a atuar em Lisboa. E no Coliseu.
Maurice Béjart: uma vida dedicada a grandes projetos de dança
Começou aos 18 anos, no corpo de baile da Ópera de Marselha, cidade onde nasceu. Filho de um filósofo, Maurice estudou em Paris e Londres antes de fundar o Ballet de L’Étoile, em 1957, o Ballet do XXème Siécle, em 1960, e o Ballet Béjart Lausanne, também uma das companhias mais famosas do Mundo, em 1987. Morreu em 2007, aos 80 anos, na Suíça.
Parece que foi ontem, Sábado, 26JUN14
Gaduzinha incomodada
Maria Gadú voltou a cantar em Lisboa e no Porto, na semana passada. Depois da noite inesquecível de há quase três anos, no Pavilhão Atlântico – com Caetano Veloso a promover o talento emergente da Gaduzinha – coloquei a fasquia alta e saí do Coliseu dos Recreios decepcionado. Foi um concerto muito instrumental, com músicos excelentes mas demasiada electrónica para o meu gosto. Prefiro a primazia da voz.
Não por acaso, existiu essa primazia quando Maria Gadu sublinhou a situação dramática em que vivem muitos dos seus compatriotas, as oportunidades que se perderam para melhorar a vida das pessoas e a batalha da educação que o Brasil terá perdido. O público aplaudiu – sem o entusiasmo com que distinguiu as canções, é verdade – e eu recordei as palavras de Maurice Béjart, também em Junho e igualmente no Coliseu… há 46 anos.
A questão que sempre se colocará é se devem os artistas, no exercício da sua actividade, utilizar o palco – e um público que pagou bilhete para coisa diferente – e fazer passar a sua mensagem. Para mim, depende. Se o discurso for apenas político, acho a acção repugnante e mudo logo de gosto e de artista. Mas se a intervenção for eminentemente cívica vejo-a até como um dever. Foi o caso da Gadú, uma privilegiada de 27 anos a quem a miséria e o sofrimento incomodam. Chapeau!
Observador, Sábado, 26JUN14
A noite em que Béjart foi expulso pela PIDE
A