A vontade de não ter filhos é tão respeitável como a de os ter, ambas pertencem ao domínio da liberdade individual. Mas não acredito que a decisão de não trazer ao Mundo uma criança – excepto se existirem impedimentos graves – se baseie apenas num capricho, numa alegada falta de vocação para ser mãe ou pai – se for esse o caso, haverá então talento para fazer bem feito o quê? O não porque não tem sempre um motivo forte na origem, esconde razões que não se querem revelar ou nasce tão só do medo porque, como dizia Shakespeare, “ter um filho ingrato é mais doloroso do que a mordedura da serpente”.
Sou talvez a pior pessoa para debater o tema de capa desta edição da Sábado, pois fui pai várias vezes, a primeira aos 21 anos e a última aos 58. Nunca aconteceu por acaso, foram actos reflectidos que corresponderam aos sentimentos que partilhei e que só desse modo realizei plenamente. Mas reconheço que os momentos de dádiva – que vão da decisão de ter um filho até ao dia em que o vemos voar sozinho, e até para além disso – encerram também algum egoísmo. Não aquele, primário, de poder dispor de alguém que tome conta dos velhos que seremos, uma ilusão. Antes um desejo de imortalidade, de deixar raízes que nos agarrem depois da morte. Ou a velha ideia de que viveremos enquanto bater o último coração que gostou de nós, outra quimera.
Observador, Sábado, 22MAI14
A mordedura da serpente
A